Em um ano bastante surpreendente para os mercados, uma das maiores decepções tem sido a economia chinesa. Com a inesperada decisão do Xi Jinping de abandonar a política “zero-Covid” – uma política que até então ele defendia com unhas e dentes –, o mercado esperava ver uma forte dinâmica de reabertura e retomada da atividade econômica, seguindo o padrão de outros países que saíram dos lockdowns causados pela pandemia.
Aliás, isso não aconteceu. A melhor explicação pela decepção foi que, diferente da maioria dos países, a resposta da China ao choque pandêmico foi mais direcionada a apoiar as empresas, e não os consumidores diretamente. Assim não vimos na China a acumulação em mesmo nível de uma poupança excedente, que tem sido o combustível da explosão de consumo depois do fim da fase aguda da pandemia.
Assim tem sido com grande expectativa e com forte reação positiva inicial que o mercado recebeu o comunicado da última reunião do Politburo chines que parece indicar, finalmente, um reconhecimento de que as coisas não estão indo bem na segunda economia do mundo.
A falta de transferências fiscais aos consumidores durante a pandemia não foi por acaso. Xi Jinping tem, pelo menos desde 2019, enfatizado a necessidade de controlar mais fortemente o sobre-endividamento da economia, especialmente no setor imobiliário, como também o crescimento do poder econômico das grandes plataformas de internet. Ele vê esse processo de austeridade como sendo necessário para financiar a crescente concorrência geopolítica com o cada vez mais hostil EUA, concentrando investimentos em setores estratégicos, especialmente o “hard tech” com uso dual militar-civil. Ele não quer ver “the best and brightest” do seu país passando o tempo inventando maneiras mais sofisticadas de vender produtos on-line quando há uma disputa milenar a ser ganha.
Mas tudo tem sua dosagem certa, e a liderança do partido reconheceu que hoje a economia chinesa sofre de uma deficiência de demanda. O que também animou bastante os mercados foi a retirada da frase “imóveis são para viver, e não especular” do comunicado, o que parece indicar uma postura menos restritiva ao combalido, mas ainda vital, setor imobiliário que responde por 30% do PIB.
A questão agora seria detalhar o que as várias instâncias do estado farão. O UBS, por exemplo, espera medidas de afrouxo do Banco Central do Povo, medidas de reestruturação do endividamento em excesso dos municípios e aumento da oferta de crédito ao setor imobiliário.
Mas até que essas medidas venham a ser tomadas (e não há garantias disso), fica a dúvida se serão o suficiente para materialmente mudar o que parece ser um novo equilíbrio que, em muitas dimensões, se assemelha ao que aconteceu no Japão depois do estouro da sua bolha imobiliária nos anos 90.
Enquanto é verdade que a bolha imobiliária japonesa foi bem maior, e que o sistema bancário privado japonês foi pesadamente afetado, na China também é patente que muitas empresas estão querendo diminuir o nível de alavancagem, que leva ao fenômeno da “recessão de balanço” (balance sheet recession), diagnosticado no caso japonês pelo economista coreano Richard Koo, onde a tentativa do setor corporativo de direcionar seu fluxo de caixa para diminuir seu endividamento acaba diminuindo a demanda agregada ao ponto de causar uma recessão. Somente um gasto fiscal compensatório na mesma proporção pode evitar uma recessão.
Apesar de Xi ter, finalmente, entendido que há incompatibilidade entre diminuir o endividamento do setor privado e ter um crescimento relativamente robusto, não está claro que ele entendeu o tamanho do problema que a economia está enfrentando. Portanto, muito cuidado ao comprar um rally made in China.
Enquanto a China trouxe uma boa surpresa ajudando os emergentes, inclusive o Brasil, os mercados americanos continuam vivendo um bom momento, apostando na dupla pouso suave e com a revolução da inteligência artificial.
Do lado macro, tivemos boas notícias na inflação com a surpreendente resiliência da atividade econômica. Os pessimistas continuam a adiar suas previsões de quando a recessão vai acontecer, mas hoje podemos afirmar que a aposta em um pouso suave virou majoritária e consensual nos mercados.
Isso pode em si ser um problema para os mercados, que não teriam mais que “escalar uma montanha de preocupações”, com os pessimistas gradativamente jogando a toalha.
Vários indicadores de posicionamento e sentimento nas bolsas continuam a apontar para uma situação de sobreposicionamento comprado.
Os estrategistas do JP Morgan (que continuam pessimistas) apontam para a grande concentração do mercado nas seis ações “big tech” ligadas ao tema de inteligência artificial (estranhamente eles não incluem a Apple nessa lista). As seis (a saber: MSFT, GOOGL, AMZN, META, NVDA, CRM) detém hoje a maior concentração do mercado em 60 anos. Historicamente, tanto em um horizonte de seis, como de doze meses, a tendência do mercado é de correção depois de forte concentração, com queda das “queridinhas”.
Assim, os resultados dessas empresas para o último trimestre serão chaves para sustentar e ampliar os ganhos de múltiplos vistos neste ano devido ao frenesi com a inteligência artificial, ou se o mercado deve recuar calibrando seu otimismo. Já vimos nessa semana um caso positivo – GOOGL subindo mais de 5% – e um caso negativo – MSFT caindo mais de 4% depois da divulgação dos seus resultados.
Na lista de razões explicando a resiliência da economia a despeito de todos os esforços do Fed, os déficits fiscais do governo Biden merecem lugar de destaque. Apesar de os EUA estarem vivenciando uma economia com pleno emprego, o déficit fiscal nominal americano já está em US$1,39 trilhão, versus todo o ano passado de US$1,38 trilhão, o que dá nos últimos 12 meses 8,6% do PIB, uma quantia equivalente aos déficits durante a crise de 2008 e somente superados durante o fundo da pandemia.
Olhando os detalhes, o grande vilão são as despesas, hoje equivalente a 26% do PIB no nível federal. É verdade, como observam os economistas da Goldman Sachs, que esse número deve melhorar para algo mais perto de 7% do PIB com o cancelamento judicial do programa de perdão das dívidas estudantis, e que a receita tributária foi prejudicada pelas perdas nas bolsas em 2022. Mas ainda assim está ocorrendo uma quebra estrutural no endividamento americano, que no seu estoque bruto já atinge 120% do PIB.
O interessante é a falta de comentário ou interesse neste assunto. Isso sinaliza como a questão fiscal foi relativizada depois da pandemia, onde um resultado tão anômalo passa despercebido. Hoje simplesmente não há ninguém no espectro político – eu duvido que uma vitória dos Republicanos nas eleições do ano que vem mudaria muita coisa – e muito poucos nos mercados minimamente preocupados com isso – o que indica que devemos manter o assunto no nosso radar como um importante “known unknown”.
Tivemos a reunião do Fed nesta semana, com o esperado aumento de 25 pb. Para a faixa de 5,25%-5,5%. Powell teve sucesso em não mostrar nenhum viés durante a conferência de imprensa (o que não é algo que ele sempre consegue fazer). Ele demonstrou felicidade no fato de que a inflação já caiu bastante e, como ele notou, a taxa de desemprego está no mesmo patamar de quando o Fed começou a subir os juros, o que é realmente algo perto de um milagre. A mensagem foi de “data dependence” e decisões de reunião a reunião – o que implicaria, pelos “dots” da última reunião, mais um aumento em setembro. Mas boa parte do mercado está acreditando que a tendência de desinflação deve continuar, que esse, de fato, foi o último aumento de juros.
Há um ditado na bolsa americana “sell in May and go away”, ou “vende em maio e fique zerado”. O conselho parte da constatação, empiricamente correta, que sazonalmente a bolsa americana tende a performar bem no início do ano e sofrer nos meses do outono do hemisfério norte.
Com o fundo da atual tendência de alta feita no último outubro (mais uma confirmação positiva da tese de que vale a pena vender antes, e depois comprar no outono), e o mercado chegando perto de zerar todas suas perdas sofridas durante 2022, a meu ver, vale a pena tirar o pé do acelerador.
Enquanto as duas razões fundamentais para a boa performance dos ativos de risco – a esperança em um pouso suave da economia e a promessa da inteligência artificial – podem ainda ser o cenário mais provável, o fato é que ambos esses temas hoje são consensuais e já estão precificados. Não estamos mais “escalando uma montanha de preocupações”. Isso deixa o mercado bem mais exposto a qualquer revés. Se partimos do princípio que os mercados, por natureza, impõem a maior dor no maior número de investidores, estamos agora em uma situação onde uma correção de preços vai trazer maiores danos ao humor dos investidores.
Um abraço.