“Andrei abaixa a cabeça e olha para o chão, seus longos cabelos pretos se aninham no lado esquerdo de seu rosto, ele espera um tempo assim, duas lágrimas caem sobre o piso. Ele ergue os olhos, pretos, molhados, brilhantes, penetrantes. Ele não quis matar você, ele quis marcar você. Agora você é miedka, aquela que vive entre os mundos.”
Esse é um trecho do livro “Escute as feras”, da antropóloga Nastassja Martin. Além de servir como apelido para minha filha Maria, por razões que você logo vai imaginar, a palavra “miedka” é empregada para designar as pessoas “marcadas pelo urso”, que sobrevivem a um encontro (ou a uma batalha, para ser mais literal) com o animal. Como o próprio livro explica, o termo remete à ideia de que a pessoa que carrega esse nome é dali em diante metade humana, metade urso.
Olha, eu nunca tive a experiência, mas suspeito que uma sobrevivente a um round com um urso siberiano deve ser uma camarada bem casca grossa.
Vez ou outra, me pego pensando se há alguma experiência insuperável, coisas que ficam marcadas na gente necessariamente de forma definitiva e intransponível ou se tudo é passível de superação (no sentido psíquico) e arejamento. É óbvio que não tenho a resposta.
Lembro daquela linda metáfora do Contardo Calligaris, que, pra mim, acima de tudo era um pensador. Costumava dizer que acontecimentos marcantes do ponto de vista psíquico funcionam como uma tempestade na caatinga. Chove uma primeira vez naquele clima árido e formam-se sulcos para o escoamento da água. Numa próxima tempestade, a água volta a escorrer pelos mesmos canais. A vida é um pouco assim. Carregamos nossos sulcos, para onde nossas aflições acabam voltando, de novo, e de novo, na típica compulsão à repetição, ainda que isso nos cause desprazer.
É curioso como os mitos e as imagens nos revelam coisas mais facilmente do que explicações literais. Eu jamais me recordaria da definição freudiana descrita em “Além do princípio de prazer”, mas essa figura do Contardo me vem à mente inclusive quanto tento esboçar um prognóstico sobre as características do próximo bull market brasileiro.
Sabe, já estamos um tanto velhos para acreditar que as coisas serão muito diferentes desta vez. Conhecemos a montanha-russa brasileira. Conforme muito bem sintetizou André Jakurski no Valor, “não vejo problema macro relevante pelos próximos dois anos”. Então, a Selic vai cair de maneira contundente, talvez num ritmo de 75 pontos-base por reunião do Copom (assunto para o final do ano) e as ações passarão pelas duas fases típicas do bull market: o re-rating e depois a expansão dos lucros.
Mas também não sou ingênuo o bastante para pensar que as coisas nunca são diferentes. Soa descolado provocar com o bordão “ah, então, você acha que desta vez é diferente?”, como se você fosse um interlocutor idiota iludido que nunca tivesse vivido nada. A real é que, às vezes, as coisas são diferentes mesmo (há inclusive teste empírico para isso e em cerca de 20% das vezes forma-se um padrão diferente dos anteriores).
Existe um elemento factual e objetivo diferente deste próximo ciclo comparativamente aos anteriores. Ele já está contratado. Até poucos anos atrás, tínhamos 500 mil CPFs cadastrados e ativos em Bolsa. Ou seja, um percentual ínfimo da população brasileira conhecia esse negócio. Então, o sujeito via seus rendimentos menores na renda fixa nos momentos de juro baixo e, principalmente, sentia inveja do cunhado ganhando dinheiro, e decidia migrar parte dos seus recursos para a bolsa. Era um ambiente virgem, inexplorado.
Ainda que o percentual de investidores em ações no Brasil seja baixo para padrões internacionais (nuance importante: na verdade, não é tão baixo assim quando ponderamos pela nossa concentração de renda e pelos critérios de mensuração que tiram certos planos de previdência da conta, mas isso não prejudica o argumento geral), agora o jogo é outro. Já são cinco milhões de pessoas investindo em Bolsa. Agora, o tal varejo afluente conhece a Bolsa.
E o pior: ele chegou lá em grande medida no topo do ciclo, atraído pelo rali pós-pandemia, pela Selic de 2%, pelos cheques que foram enviados à casa das pessoas e pelo novo video game chamado Home Broker, num momento em que não se podia sair de casa. Teve também aquele monte de IPOs estapafúrdios prometendo dominar o mundo, mas vamos pular essa parte mais anedótica. O camarada chegou meio despreparadão, atraído pela ganância para um jogo que não sabia jogar direito, pagando caro e comprando empresas, em geral, ruins ou problemáticas. Deu no que deu! No geral, seguir o seu influencer favorito resultou em falências de dezenas de milhares de famílias (não, não é um exagero).
Claro que isso é uma tragédia em si. Mas este texto não tem um viés histórico ou retrospectivo. Meu principal ponto de preocupação é que o investidor que brigou com o bear market o carregue para sempre dentro de si. Logo, logo, alguém lança a hashtag: “somos todos miedkas”.
O investidor de varejo está machucado agora. É diferente de antes, quando ele sequer conhecia a B3. Aquela história de que “cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça”. Não existe “ex-cliente novo” (ou seria “novo ex-cliente”? Sei lá). Você pode ir a um restaurante novo que não conhece. Mas dificilmente vai voltar em algum que já foi e não gostou. Se você levar à lógica para a conclusão de que o investidor é um cliente da B3, ele vai exigir um pouco mais para voltar lá, ainda que a culpa não seja exatamente da B3. Fica o gosto da experiência e, muito raramente, o investidor vai conseguir dissociar as coisas, reconhecer que seu timing foi ruim, que ele não tinha perfil, que as ações foram mal escolhidas ou que ele simplesmente deu azar. A tendência é sempre aquela coisa meio rasa de caça às bruxas, de meter a culpa em alguém. E concluímos assim que “Bolsa é cassino e essa história não é pra mim”.
E tem outro ponto mais sutil nesta história. É verdade que muito influencer despreparado destruiu a vida de velhinhas inocentes. Mas o lado mais perverso dessa história é que houve muitos fundos de ações historicamente respeitados, com gente séria e trabalhadora, profissional e responsável, que enfrentou drawdowns impensáveis — coisa de 50%, até 60%, de gente que sempre ganhou dinheiro. Uns cresceram demais, outros viram suas principais lideranças ficarem muito institucionalizadas e afastadas do chão de fábrica, um terceiro grupo sofreu do style-drift, teve ainda uma turma que perdeu seus braços direito e esquerdo, alguns não viram o quanto o juro ia subir (e subiu) insistindo em teses que acabaram implodindo, pois só funcionavam na era do juro zerado.
Essa provavelmente também será uma característica do novo ciclo positivo. Algumas daquelas gestoras de ações clássicas que todos nós admirávamos talvez tenham passado por histerese. Não voltam mais. Claro que não estou falando da Dynamo e da Atmos, que seguem no Olimpo. Também preciso, para ser minimamente justo, mencionar Brasil Capital e Núcleo Capital, cujos processos, a equipe e a dedicação hoje são iguais ou melhores do que antes. Dificilmente você vai ler isso por aí, talvez por conta das personalidades mais reservadas e discretas do André Ribeiro e do Luis Soares – isso inclusive pode ser causa para as coisas, vai saber? Em gestão de fundos de ações, talvez valha a máxima de que “se é instagramável, é ruim”.
Chega a ser instigante também como os gestores de ações passaram a ser conhecidos agora. Essa turma ganhou uma conotação de herói antes de passar pelos seus drawdowns — e, sim, eu reconheço minha culpa e a da Luciana Seabra nesse cartório. As pessoas primeiro entenderam que o Stuhlberger, o Rogério, o Jakurski são heróis. Mas depois elas também entenderam que, apesar de heróis, esse pessoal ainda é ser humano, os mercados são ambientes de alta complexidade, o erro faz parte do processo e a renda variável varia. O problema é que isso impôs uma frustração grande para um determinado número de pessoas que, erradamente, passaram a desacreditar nessa indústria.
O risco é justamente o investidor de varejo demorar mais tempo para voltar. Vamos precisar fazer pico atrás de pico para, aí sim, ele se empolgar. O problema é que daí talvez seja tarde demais. Até os alocadores dos grandes bancos, tradicionalmente transatlânticos que demoram a se mover, estão sugerindo um aumento da posição em ações. Todos nós podemos matar o urso que existe dentro da gente. “We can be heroes, just for one day.”