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Day One

Francis ou Francisco: dançando à beira do vulcão

Estamos penetrados num viciado “group thinking”, em que mais vale obedecer a certos critérios ideologizados do que pensar com a própria cabeça. Estamos nós mesmos criando a própria “cama de Procusto”.

Por Felipe Miranda

16 jul 2024, 07:00

Imagem: Unsplash

E se você tivesse de escolher entre o fascismo e o comunismo? Estaria preparado? Qual a sua decisão? 

Ray Dalio, o mais do que gestor da Bridgewater, lançou a provocação em artigo recente em seu LinkedIn. O texto era, em grande medida, uma longa argumentação para justificar sua atribuição de mais de 50% de probabilidade para uma guerra civil nos EUA.

O nível de polarização da sociedade norte-americana (talvez pudéssemos dizer o mesmo sobre a brasileira) é tamanho que o diálogo com o outro espectro vai se tornando impossível. Se você odeia tanto o outro lado, se acha que a vitória de seu antagonista político lhe representa um grande mal ou se a pior coisa que pode acontecer àquela sociedade é a visão oposta assumir o poder, então vale tudo para impedir sua ascensão. 

No “vale tudo”, incluem-se, claro, atentados contra candidatos a presidente, fechamentos do Congresso, perseguição a membros da Suprema Corte, censura à imprensa. Estamos cada vez mais fechados em nossos comportamentos tribais, olhando o mundo por aquelas lentes apenas. Se você está com fome e sob ameaça de morte, mais valem a proteção do grupo e a segurança de um líder forte (populista) do que propriamente a alternância de poder ou instituições de representação popular. 

A democracia, que não admite violência política e depende de judiciário e imprensa independentes para funcionar, tem sido violentada. Os “ídolos da tribo” de Francis Bacon são um dos quatro obstáculos para chegar à verdade. Estamos penetrados num viciado “group thinking”, em que mais vale obedecer a certos critérios ideologizados do que pensar com a própria cabeça. Estamos nós mesmos criando a própria “cama de Procusto” – para nos fazer caber dentro de determinado campo político-ideológico, abrimos mão da complexidade e da pluralidade de individualidade humana, com suas contradições e vicissitudes, para nos limitarmos a determinado rótulo.

Não há como subestimar o atentado contra Donald Trump – quando Francisco Ferdinando foi assassinado, ninguém imaginou a priori que caminharíamos para a Primeira Guerra Mundial. Ainda que seja ação de um lobo solitário, reflete o grau de polarização da sociedade e até onde cada um dos lados está disposto a ir para evitar a vitória de seu antagonista. Quando colocamos a coisa em contexto e a somamos à facada contra Bolsonaro, à invasão do Capitólio e aos eventos de 8 de janeiro de 2023 no Brasil, percebemos o quanto a corda está esticada. Ela tem resistido, mas não sabemos até quando.

O evento do final de semana deveria servir como alerta. As lideranças políticas poderiam e deveriam atuar em prol do abrandamento das tensões. Os grupos, de lado a lado, precisariam reconhecer como esse caminho é ruim e onde poderia nos levar. As primeiras reações ao atentado, no entanto, não são nada auspiciosas.

A esquerda mais radical insiste num suposto atentado, de um suposto tiro, vindo de um suposto rifle, ainda que o atirador tenha sido morto e pessoas na plateia tenham sido assassinadas. A direita extremista, por sua vez, identifica uma guerra do bem contra o mal – ainda mais surpreendente, se autoproclama no lado do bem, evidente. Curioso como a crítica anterior era de que a esquerda se posicionava como monopolista da virtude, posto esse ocupado agora pela direita radical. 

Não é um suposto atentado. E também não há guerra alguma do bem contra o mal. O maniqueísmo só existe em Hollywood e em proposições religiosas, como narrativas simplificadoras e infantilizadas da nossa existência – como na infância, precisamos de alguém para nos proteger da grandiosidade de um mundo desconhecido e ameaçador, seja um ente sobrenatural, seja um político para servir-nos de figura paterna. Alguns “dad issues” são insuperáveis.

Enquanto acharmos que o outro lado representa o mal, o distanciamento só fará aumentar. Nós, seres iluminados dotados do bem, teremos de combatê-los a qualquer custo. Chegamos, assim, à guerra civil interna nas grandes democracias. 

Evidentemente, para o eixo composto por Rússia, Irã, China e as adjacentes Coreia do Norte e Venezuela, é ótima notícia. Se nós mesmos não valorizamos os princípios ocidentais consagrados pelo Iluminismo, por que os outros o farão? 

A fragmentação e o conflito internos são a antessala da ameaça externa. O adversário na Segunda Guerra Fria em curso acompanha com entusiasmo os recentes desdobramentos. O risco maior é de que nós sejamos os soviéticos dessa vez – nunca as universidades norte-americanas de ponta estiveram tão questionadas, jamais houve esse nível de desconfiança sobre a Suprema Corte dos EUA, a imprensa tradicional estadunidense perde penetração e relevância, o Congresso não ecoa os anseios da população, não há lideranças jovens e renovadas; ao contrário, os candidatos à presidência são tão viris quanto Brezhnev, Andropov e Chernenko.

Para os mercados, a ideia de que o atentado fortalece a candidatura republicana disparou o chamado “Trump Trade”, associado a maior inclinação da curva de juros, fortalecimento do dólar sobretudo contra moedas emergentes, disparada das criptomoedas e valorização das bolsas dos EUA. Trump cortaria impostos e renovaria estímulos tributários vincendo em 2027, beneficiando os lucros corporativos (bom para as ações) mas também se descuidando do fiscal (juros longos pra cima). Também imporia mais tarifas à China, com potencial recrudescimento das relações comerciais e alta dos produtos importados, tendo efeitos inflacionários. A ideia do excepcionalismo norte-americano tentaria isolar a China e afastar-se da Otan. Restrições à imigração poderiam aumentar salários, também pressionando a inflação. 

Em termos microeconômicos, o setor de defesa poderia receber mais gastos e incentivos. A maior militarização, inclusive, tenderia a beneficiar aço e minério de ferro, ao menos na margem. O segmento de petróleo fica mais bem posicionado, assim como a menor regulamentação deve ajudar o setor financeiro. Por outro lado, nichos de energia limpa e grandes farmacêuticas são perdedores em termos relativos.

Ademais, o recrudescimento das tensões sócio-políticas e a evidência de radicalização intensa são um catalisar em prol de hedges canônicos, como ouro, ativos físicos e, em alguma medida, o bitcoin, que cada vez mais ocupa um espaço como reserva de valor. Imóveis e, particularmente, terras podem ser especialmente atraentes sob ameaças recorrentes à democracia. Numa eventual guerra, você vai precisar de energia e comida. Aliás, estar na América Latina, no meio do Planalto Central brasileiro, pode não ser uma má ideia.  

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Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.