Day One

Testando o cercadinho

Scott Galloway costuma dizer que uma das dificuldades de se lidar com Elon Musk deriva do fato de que seu efeito líquido sobre a sociedade é claramente positivo.

Por Felipe Miranda

10 set 2024, 11:03 - atualizado em 10 set 2024, 11:10

elon musk twitter x tesla

Imagem: Reprodução

Scott Galloway costuma dizer que uma das dificuldades de se lidar com Elon Musk deriva do fato de que seu efeito líquido sobre a sociedade é claramente positivo. Então, se o sujeito nos traz grandes coisas boas, fica mais difícil condenar seus atos ruins.

A própria biografia de Musk, escrita por Walter Isaacson, que me parece, também em termos líquidos, claramente pró-biografado, mostra como o multibilionário tem um lado demoníaco – até mesmo autorreconhecido.

De alguma maneira, aplicamos aqui o velho conceito do “halo effect”. A percepção de que uma determinada virtude pessoal se espraia para uma qualificação geral da benevolência do personagem, ainda que, dentro de nós, saibamos que não há auréola nenhuma sobre a cabeça de ninguém. Indiscriminada e democraticamente, dos miseráveis aos bilionários, todos convivemos com nossos médicos e monstros.

Medir o impacto líquido de uma força resultante, em que vários vetores atuam em direções diferentes, será sempre mais difícil do que mensurar uma única força. Resolver uma derivada parcial é mais simples do que um diferencial total. Há um detalhe: a realidade objetiva costuma ser muito mais parecida com o último. No dia a dia, não conseguimos isolar variáveis, a não ser em testes de laboratório ou em exercícios de microeconomia sob a hipótese de “ceteris paribus”.

Há algo capcioso em relação aos mercados locais desde o começo de agosto. A verdade é que o Brasil piorou nas últimas semanas. Enquanto isso, os ativos domésticos apresentaram valorização. Quase a integralidade da melhora se deve ao nível excessivamente descontado de nossas principais variáveis financeiras somado à perspectiva de redução das taxas de juro internacionais.

Recentemente, o gestor Luis Stuhlberger, também ciente da importância dos efeitos líquidos e não absolutos, afirmou que a nomeação de Gabriel Galípolo é “uma notícia mais boa do que ruim”. Dada a incerteza do processo, dadas as últimas declarações de Galípolo mais alinhadas ao livro-texto e, principalmente, consideradas as alternativas, Stuhlberger está correto. Lembra, inclusive, a caracterização do próprio gestor quando do anúncio do arcabouço fiscal: “melhor do que o temido, pior do que o desejado.”

É curioso, no entanto, como o Brasil celebra a mediocridade. Galípolo não dispõe de publicações acadêmicas em journals de primeira linha, não oferece uma carreira como empreendedor de destaque ou executivo com passagens por instituições renomadas, tampouco se alinha à ortodoxia esperada de um banqueiro central. Com a devida honestidade intelectual, havemos de reconhecer sua recente tentativa de transmitir a ideia de alinhamento ao pensamento de Roberto Campos Neto e sinalizar continuidade após a transição. Mas os esforços para se mostrar um bom garoto e recuperar a credibilidade, embora sejam adequados e potencialmente bem-sucedidos, trazem custos. 

Em busca da credibilidade perdida, há quem defenda uma alta de até 300 pontos-base da taxa Selic. Não é pouca coisa. E não nos iludamos: se vier algo dessa magnitude, haverá impacto sobre os lucros corporativos. Entramos em 2024 esperando um juro básico de 8% em dezembro. O consenso de mercado agora aponta uma caminhada rumo a 12%. 

A antítese à tese potencialmente diria que o aperto monetário se justifica pelo crescimento acima do esperado do PIB e da menor taxa de desemprego desde 2014. Há méritos no contra-argumento. Contudo, boa parte da superação do PIB frente às estimativas de consenso no segundo trimestre advém do consumo do governo, enquanto o investimento frustrou as projeções. 

A tentativa de crescimento a qualquer custo sugere pressões inflacionárias à frente e trajetória descontrolada da dívida pública, com riscos de perdermos a moeda. O crescimento do PIB virou uma obsessão, num pé na tábua de gastos, antecipação de benefícios e de medidas desesperadas. 

A meta de superávit primário é a segunda obsessão do momento. Tergiversamos sobre o real problema fiscal brasileiro e tornamos a meta em si o objetivo final. Quebramos o termômetro porque ele indica febre do paciente. A febre continua lá, mas a nova medição cumpre a meta de temperatura corporal.

Mudamos a contabilização de precatórios, tiramos gastos com a recuperação do Rio Grande do Sul da conta, contabilizamos transferências para o programa Pé de Meia com certa elasticidade, colocamos tudo que podemos (e até o que não podemos) nas receitas oficiais. Os paralelos com os anos recentes de contabilidade criativa são um tanto evidentes. Cumprimos a meta de superávit oficial, mesmo diante de deterioração fiscal e parafiscal.

A discussão recente sobre o Vale Gás daria inveja a Arno Augustin. Voltamos ao voluntarismo de uma intervenção atabalhoada, que desobedece às sinalizações do sistema de preços e impõe custo ao Tesouro. Se tínhamos medo de que o calendário eleitoral suscitaria populismo exagerado às vésperas das eleições de 2026, nem precisamos sofrer com a ansiedade: ele já começou.

Outro ponto da deterioração brasileira nas últimas semanas se liga à pior percepção sobre o risco institucional. Não é verdade que as redes sociais só sofram restrições e banimentos no Brasil e em países com pouca tradição democrática. Pavel Durov, fundador do Telegram, acaba de ser preso na França (Liberté, Igualité, Fraternité, nessa ordem, lembra?). O TikTok pode ser banido dos EUA, igualzinho ao Twitter por aqui. E a União Europeia também estuda sanções pesadas. Agora, quando o STF mistura os canais e traz a Starlink para um rolo de uma outra empresa, atira contra princípios da lei das SAs e traz enorme insegurança jurídica. Será que já podemos pedir um engradado de Brahmas em troca dos problemas creditícios de Lojas Americanas (AMER3)

Tudo acontecendo num mês de sazonalidade tipicamente mais fraca para as bolsas globais, quando, no âmbito local, encontramos com nosso maior fantasma. Agosto e setembro costumam expor nossa fragilidade fiscal porque ensejam o debate sobre o orçamento do ano seguinte. A conclusão é aquela de sempre: o cobertor é curto, falta dinheiro, as receitas tributárias são superestimadas e as despesas subestimadas.

Diante da deterioração sistêmica das últimas semanas, não há muitas dúvidas de que não teremos um passeio no parque. Haverá bastante volatilidade, choro e ranger de dentes. Mas o Fed e os valuations muito baratos com lucros crescendo serão nossa ponte até 2026. A partir daí, o foco é outro e bastante óbvio.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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