Investimentos

Sete dias que abalaram o mundo

Uns dirão que é apenas uma forma de investir. Eu acho que é uma visão de mundo.

Por Felipe Miranda

24 maio 2017, 10:14

Uns dirão que é apenas uma forma de investir. Eu acho que é uma visão de mundo.

Lembra daquele 24 de maio de 1992? Você acordou às 6h, dirigiu-se ao banheiro, despiu-se do pijama cinza claro (fora cinza escura certa vez), ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, deu aquela aliviada na bexiga, ainda sem acender as luzes – ninguém aguenta tanta claridade às 6h da matina. Escovou os dentes pacientemente, em movimentos circulares exatamente como recomenda o Dr Pedro, já imaginando as tarefas diárias. Agenda redondinha: deixar o filho na escola às 6h50, reunião com analistas às 7h30, atualização de modelos até às 12h, almoço com private banker, reunião com empresa à tarde. Encontrou o personal às 18h30 na Reebok e foi para casa naquele trânsito de sempre, para então comer aquela janta de sempre, com a cerveja de sempre e o narrador de sempre na TV Globo alertando para preparar o seu coração ao teste de cardíacos que vai se iniciar às 21h40 pela segunda rodada da Copa do Brasil.

Não lembra?

E de quando pulou de para-quedas? Do dia em que nasceu o seu filho? Da vez em que se apaixonou perdidamente e fez juras de amor eterno, que duraram até às 16h do dia seguinte? Da vez em que tomou todas na festa da firma no fim do ano, viu e reviu o filme do Michael Douglas em pleno evento e acabou com sua carreira? Do dia em que você faltou no trabalho fingindo uma enxaqueca para trancafiar-se entre quatro paredes com aquele(a)(s) amante(s) avassalador(a)(s)? (Abuso dos parênteses porque, hoje em dia, vai saber, né? Pra mim, tudo pode.)

Acho que entendeu o ponto. De dias como esses, talvez você lembre, ou de algum evento semelhante capaz de marcar sua vida para sempre. Cá com meus botões, eu tenho alguns inesquecíveis. Aqueles que podem até ter sido únicos, mas ficarão para sempre, guardados lá no fundo como um tesouro escondido. Esses, eu valorizo. Vivo às turras com a mediocridade. Seja quente ou frio. Os mornos eu vomitarei.

Retomo a frase dita aqui há exata uma semana, copiando Taleb, claro: “start looking from the tail” (comece olhando pelos eventos extremos). Sim, ela foi escrita antes do Friboi-gate.

Essa é a visão de mundo que muda tudo! Um dia pode ser capaz de explicar toda sua existência, um momentozinho em que você pode se olhar no espelho e dizer: “seja lá o que for daqui pra frente, foi do caramba!” (ficaria melhor com o palavrão, mas eles me censuram aqui).

O que eu desejo para sua vida é o quarto parágrafo. Digo sua vida financeira, no caso.

Imagine uma amostra aleatória de mil pessoas. Meça o peso dessas pessoas.  Tira a média dessa variável. Adicione à seleção a pessoa mais gorda do mundo (gorda ainda pode falar ou também é fora do código de ética da Apimec?). Refaça o cálculo da média do peso dessas pessoas. Não mudou muita coisa, certo? Estamos no mundo “Mediocristão”, dos medíocres, da valorização da média, em que tradicionalmente se distribuem as variáveis naturais.

Agora meça a média do patrimônio de uma amostra aleatória de mil pessoas. Adicione Bill Gates à seleção. Refaça o cálculo. Chegamos a algo completamente diferente. Bill Gates, sozinho, vai representar quase a integralidade do patrimônio de toda a amostra! Bem-vindo ao Extremistão, o mundo em que se valoriza o extremo, o evento raro que explica toda uma trajetória.

 

Se nós vivêssemos um mundo “normal”, comedido e bem comportado, o comportamento do Ibovespa na quinta-feira passada seria equivalente a um retorno cerca de cinco desvios-padrão distantes da média. Ora, ora. Na famosa distribuição gaussiana, a probabilidade de ocorrência de um evento dessa natureza seria desprezível – eu até procurei aqui rapidinho na tabela da distribuição Normal, mas, com pressa, nem achei; cinco desvios é algo considerado tão raro e absurdo que nem sequer está na tabela. Só para se ter uma ideia, a probabilidade de ocorrência de um evento de quatro desvios padrão nessa distribuição é de 0.00006. Ou seja, cinco desvios é quase uma probabilidade semelhante àquela de eu sair voando aqui pela janela.

Ocorre que, se recorrermos à série histórica do Ibovespa, encontramos sete eventos como esse nos últimos 25 anos. Obviamente, tem alguma coisa errada. É o evento raro mais frequente do universo.

O Ibovespa não é normal, lognormal ou qualquer coisa parecida. Ele tem as chamadas caudas gordas (neste caso, pode o “gordas” sem erro, né?). O problema é que a maior parte dos super científicos modelos adotados por aí estão sob a hipótese de retornos normais.

E o pior ainda está por vir: os tais modelos, obviamente, não foram capazes de detectar o evento de quinta-feira. Não digo nem no sentido de antecipar tal evento – isso seria impossível mesmo. Mas aponto no sentido de apenas sugerir a hipótese de sua ocorrência, como mera possibilidade. O dia que provavelmente definiu o retorno anual inteiro do cidadão simplesmente foi tratado como uma impossibilidade.  Sabe o que vai ser feito agora? Nada. Absolutamente nada. Os treinados na estatística do mediocristão vão tratar o retorno de quinta-feira como um “outlier”, jogar fora essa observação e seguir a vida, de novo, sem admitir a hipótese de nova ocorrência de evento semelhante à frente.

Não é brincadeira, nem elucubração. Está escrito, ipsis litteris, no jornal Valor de hoje: “nossos modelos terão que ser sensibilizados por esse cenário.”

Entendeu a lógica? O modelo não capturou o evento supostamente raro. Agora, em vez do sujeito jogar fora o modelo, que claramente não funcionou (ele mesmo acaba de admitir), ele vai voltar ao mesmo modelo para atualizá-lo. É uma coisa louca.

Vocês vão me desculpar pela sinceridade, mas hoje o Valor está imperdível. Leitura altamente recomendada. A começar pela capa “Pragmáticos, estrangeiros aproveitam queda da Bolsa.” A capacidade de adjetivar os investidores estrangeiros é realmente admirável. Eu fico pensando o que seria um investidor subjetivo, abstrato, antônimos clássicos de pragmático. O ato de investir pressupõe pragmatismo.

Nada se compara, porém, à definição da “estratégia de valor” usada para escolher ações, uma combinação de “análise fundamentalista e preço”. Imagino o que seria uma análise fundamentalista sem preço. Como pode algo combinar-se consigo mesmo? Não há como fazer análise fundamentalista desprezando preços, são coisas indissociáveis. É uma espécie de “Eu, eu mesmo e Irene” da análise de investimentos.

Essa matéria trata do belo (sem ironias) congresso Value Investing Brasil, feito ontem com grandes gestores de ações. Numa realização notável, dessas dignas do Extremistão, os melhores gestores presentes no evento (Fábio Alperowith, da Fama, e Flávio Sznajder – torço para ter escrito certo – da Bogari) foram simplesmente ignorados pela reportagem. Devem ter visto na programação e pensado que era marca de roupa: Bvlgari. Só pode ser isso.

Volto a Raulzito: “não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz.”

 

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.