Depois de um início de ano estelar, com alta significativa em todos os meses de 2023, o bitcoin perdeu força e caiu cerca de 10% nos últimos 30 dias.
Por outro lado, o volume de transações atingiu sua máxima histórica e as taxas da rede chegaram em patamares não vistos desde o bull market de 2021. Como explicar duas informações tão antagônicas?
Esse movimento se deve à criação de uma nova classe de ativos, os tokens do padrão BRC-20 na rede do Bitcoin.
E o que é o BRC-20?
Para entender melhor, é necessário voltar um pouco no tempo. Mais precisamente em 2017, quando foi ativado o Segwit, que permitiu o aumento no tamanho de bloco da blockchain (mais dados podem ser processados ao mesmo tempo) e a criação de solução de escalabilidade da rede como a Lightning Network (que funciona como se fosse uma segunda camada de Bitcoin).
Já em 2021, ocorreu a atualização Taproot. Ela foi responsável por mudanças que vão desde o aumento da privacidade nas transações e redução de taxas até a eventual implementação de contratos inteligentes, os smart contracts.
A junção destas duas atualizações permitiu que novos experimentos surgissem no protocolo do bitcoin.
Um deles, é o fato de que é possível adicionar dados a um satoshi, que é a menor fração de um bitcoin (1 BTC = 1 milhão de satoshis).
“Isso faz com que cada satoshi possa carregar uma mensagem on-chain diferente e os torna não fungíveis ou, em outras palavras, um NFT”, explica o head de cripto da Empiricus, Vinicius Bazan.
Como explica o analista, os NFTs do bitcoin funcionam como se a fração de bitcoin ganhasse uma “tatuagem”. “É como se você pegasse uma cédula de real e desenhasse nela. Ela continua sendo uma cédula, mas se tornou única em sua aparência”, explica.
Assim como no caso dos NFTs, que utilizam um sistema de numeração chamado de Ordinals, é possível criar tokens fungíveis – neste caso, os tokens BRC-20.
Eles explodiram no mercado nas últimas semanas, com mais de 14 mil criados até o momento. Os tokens BRC-20 somam US$ 641 milhões em valor de mercado.
O principal deles é o ORDI, o primeiro a ser criado como experimento. Seu estoque máximo é igual ao do bitcoin, com 21 milhões de unidades. E, naturalmente, as memecoins tomaram conta da cena.
O token PEPE foi criado também na blockchain do bitcoin depois do sucesso no Ethereum.
Vale a pena comprar esses ativos?
Para o analista, a resposta é não. “Eles são experimentos iniciais e, principalmente no caso das memecoins, sem fundamento relevante”, aponta Bazan.
Segundo o analista, dentre os tokens BRC-20, o mérito principal fica para ORDI como uma prova de conceito.
“O que poderia amparar seu valor no futuro, entretanto, é menos uma dinâmica econômica do token e mais o fato de que, em caso de sucesso do padrão BRC-20, ele pode passar a ser considerado quase um colecionável do tipo ‘eu estive lá’”, acredita.
Tokens congestionaram rede do bitcoin
Nesta altura, já deve ter ficado claro que, embora a tecnologia que permitiu a criação dos NFTs e BRC-20 no bitcoin não seja recente, o surgimento desses tokens foi repentino.
Isso ocasionou um aumento exponencial nas taxas de transação da rede, congestionando-a a ponto de fazer a corretora de cripto Binance pausar saques de bitcoin no último final de semana.
Os mais puristas do Bitcoin julgam que este é um ataque coordenado para prejudicar a rede, como já aconteceu em outras ocasiões.
Porém, o aumento das taxas de transação é uma resposta natural e esperada do sistema em momentos de alta demanda e pode ocorrer por qualquer motivo que leve a um maior volume de transações simultâneas.
Quais são as possíveis soluções para as altas taxas e congestionamento da rede do bitcoin?
A grande questão é: uma vez que é inevitável que os preços para se transacionar no bitcoin subam e a congestão aconteça em momentos de demanda elevada, quais caminhos são possíveis para resolver esse cenário e, ao mesmo tempo, dar vazão a projetos como o BRC-20?
Neste contexto, os analistas exploraram alguns cenários.
Apesar de acreditarem que, em alguma circunstância, o grande movimento em torno dos tokens BRC-20 deve arrefecer no tempo, haverá demanda residual por espaço de bloco na rede do bitcoin que antes não existia.
“O upgrade Taproot do bitcoin destravou um espaço de inovação tecnológica e, uma vez aberta a caixa de Pandora, não há mais como voltar atrás”, enxerga Bazan.
Isso gera, na visão dos analistas, uma dicotomia. Ao mesmo tempo que essas inovações podem ser positivas para o futuro do bitcoin e dos criptoativos em geral, isso traz à tona um velho questionamento sobre algumas limitações de escalabilidade do próprio protocolo.
Dada a escassez de espaço de bloco na rede nos últimos dias, a mempool do bitcoin chegou a ficar em vários momentos com mais de 400 mil transações não confirmadas na “fila” da blockchain, esperando entrar em algum bloco.
“Essa não é uma situação desejável para o Bitcoin. Afinal, de que serve uma blockchain de pagamentos para um usuário se sua transação não é confirmada ou é necessário pagar taxas altas para ter sua transação confirmada?”, questiona Bazan.
Bitcoin já passou por ‘problemas’ parecidos
Esta não é a primeira vez que o bitcoin passa por questionamentos dessa natureza. Esse, inclusive, foi um dos motivos que levou a vários forks da rede no passado, como o Bitcoin Cash (BCH).
Essas redes surgiram justamente após a discussão sobre a necessidade de um ambiente de baixas taxas de transação para adoção em massa da blockchain, entre outros argumentos.
Elas são exemplos de redes com um tamanho de bloco maior que o do bitcoin, o que permite um número maior de transações processadas em um único bloco, reduzindo as taxas por transação.
No entanto, isso vem atrelado a um maior poder de processamento necessário para processar os blocos, o que pede uma infraestrutura maior e, consequentemente, financeiramente mais custosa.
Assim, o acesso a esse tipo de operação ao público geral seria mais limitada e poderia ferir o potencial de descentralização da rede, que ficaria mais concentrada em grandes entidades.
“Até o momento, a história prova que um maior tamanho de bloco não garante maior adoção, e pode até ser prejudicial para a sustentabilidade da blockchain no longo prazo caso as taxas não sejam suficientes para justificar o trabalho e capital despendidos para rodar uma operação de nó na rede”, defende o analista.
O gráfico abaixo mostra como o preço do bitcoin cash (BCH), um dos precursores desse movimento, derreteu em relação ao do bitcoin (BTC) ao longo do tempo.
Porém, é esperado que em momentos como este possa haver migração de usuários para redes com menores taxas e que tenham o mesmo propósito do bitcoin.
Dentre essas possíveis blockchains alternativas, a Litecoin (LTC) parece ser a principal beneficiada desse movimento, como mostra o gráfico abaixo:
“Apesar de acreditarmos que isso pode ser bom para redes alternativas, como no caso do LTC, estamos convictos de que essas redes ainda não deverão destronar o bitcoin de seu posto como principal blockchain do setor”, afirma Bazan.
Outra possível solução é a adoção de segundas camadas de bitcoin
Uma outra solução viável, na opinião do analista, é o crescimento da utilização de segundas camadas de bitcoin, como é o caso da Lightining Network.
A rede é um protocolo que visa fornecer um ambiente para pagamentos rápidos e com baixas taxas utilizando bitcoins.
Isso é possível porque ela oferece uma infraestrutura onde as transações são realizadas de maneira off-chain e confirmadas por nós próprios da sua rede.
Para que isso ocorra, as duas partes interessadas precisam depositar uma quantidade de bitcoins numa espécie de multisig e abrir um canal na rede.
É neste canal que as transações são realizadas e, após a conclusão de todos os negócios entre as partes, o canal é fechado e os saldos de bitcoins são atualizados na blockchain canônica do bitcoin.
“Essa é uma solução interessante para partes que precisam de velocidade e transacionem pequenas quantias de bitcoin com um volume razoável, o que justifica os mais de 84 mil canais abertos na rede, mas ela não resolve completamente o problema de escalabilidade da rede”, aponta o analista.
Isto porque boa parte dos custos da Lightning Network estão associados a transações de abertura e fechamento de canais realizados na rede do bitcoin.
Em momentos em que a taxa da rede principal sobe, os custos da primeira acompanham o movimento .
Felizmente, o ambiente está em constante evolução e devemos ver soluções inovadoras no espaço.
Uma alternativa que anima os analistas é a criação de segundas camadas com rollups (assim como no Ethereum), que apesar de serem mais complexas e caras no bitcoin, podem fornecer um ambiente intermediário entre a rede canônica e transações off-chains da Lightning.
“Este é um setor que deverá, vagarosamente, crescer, e não devemos ver apenas uma solução de escalabilidade no futuro como a única alternativa, mas sim uma miríade de protocolos do gênero co-existindo para aplicações específicas, e quem sabe até mesmo um ambiente mais adequado para a existência de tokens alternativos”, opina o analista.
No curto prazo, com relação ao aumento de volume de transações e das taxas, Bazan vê o protocolo desenhado para ser seguro e responder dinamicamente à demanda. “Com isso, os reflexos dos acontecimentos atuais são uma resposta natural do sistema”.
“O que está acontecendo com os NFTs e os BRC-20 talvez seja apenas mais uma ideia certa executada, por enquanto, de maneira errada. A beleza dos protocolos em blockchain, como o bitcoin, é que isso é ajustado pela comunidade de maneira orgânica e novos caminhos que destravam valor são descobertos”, finaliza.