Sabe aquela piada do Economista? Ele está caminhando no deserto há dias, exausto e faminto. Só existe uma sensação superior à sua fome: a sede. Então, ele encontra uma lata. Dentro dela há uma garrafa de água e uma série de coisas gostosas para comer. O problema: a lata está fechada e ele não dispõe de nenhuma ferramenta para abri-la.
Pergunta-se ao economista: como você resolve o problema?
Resposta: “Suponha que eu tenha um abridor de latas….”
Esse é o tipo de construção da ciência jovem que nos rende (sim, eu pertenço à classe e é por isso que gosto tanto de zombar dela – nada como rir de si mesmo diante da insuportável tarefa de ser quem você é) piadas. A Economia constrói modelos a partir de premissas completamente irreais, sem aderência à realidade e, com isso, supostamente resolve problemas platônicos. Se nós tivéssemos um abridor de latas, sequer haveria um problema a ser endereçado.
De acordo com a visão ortodoxa, porém, isso não é problema. Milton Friedman (sim, eu gosto dele!) teria dado a resposta final à questão, no clássico A Metodologia da Economia Positiva, de 1953. Segundo Friedman, não há problema se as premissas de um modelo são irreais, contanto que o modelo seja capaz de gerar boas previsões. Depois ele vai martelar os dados o quanto for necessário para provar que os modelos econômicos podem prever bem, mas deixa pra lá. Certo ou errado, o instrumentalismo de Friedman consolidou-se como uma espécie de “estado da arte” da metodologia da Economia. Feitas as premissas, não necessariamente verdadeiras, precisamos chegar à conclusão do modelo a partir do instrumental analítico-dedutivo e, a partir daí, verificar se aquilo é capaz de prever bem.
Então, se hoje você vai falar mal de um modelo econômico – sempre coloco as Finanças dentro da Economia, embora tecnicamente seja o chamado Financial Economics quem faz essa ponte com precisão -, deve fazê-lo sem atacar as premissas, julgando sua coerência interna.
Vamos lá. Farei isso agora. Peço desculpas pois o texto de hoje é um pouco mais chato e técnico do que o usual. Se você escreve todos os dias e procura, mesmo que de forma pretensiosa, passar uma coisa nova por vez, as ideias não mais lhe pertencem – é você que passa a pertencer às ideias, na minha versão para a frase linda do poeta Wystan Auden “somos vividos por poderes que fingimos entender”.
Ok, deixe-me ser 100% sincero. O texto de hoje é muito mais chato e técnico. Voltamos ao normal na segunda. Se vocês podem falar mal do FHC na enquete do Twitter do Caio…. se gestor que caiu 13,54% em seu fundo de ações na quinta-feira da semana passada e acumula queda de 5% no ano pode escrever pro jornal dando lição sobre gestão de ativos na crise…. então eu posso ao menos fazer um texto técnico. Democraticamente, após ampla votação de mim comigo mesmo, está decidido.
Faço críticas ao Modelo de Fluxo de Caixa descontado, aquele que supostamente define o valor intrínseco (justo ou preço-alvo) de uma ação a partir da soma dos fluxos de caixa projetados àquela empresa, de hoje até o infinito, trazidos a valor presente por uma taxa de desconto apropriada.
Veja que não ataco as premissas. Refiro-me à falta de coerência interna do modelo e ao que considero uma tautologia dentro de sua construção. Ou seja, quero matar o modelo mesmo dentro da ótica instrumentalista de Friedman, preservando as premissas e acusando sua lógica interna.
Embora seja uma discussão técnica, ela encontra grande apelo prático, pois o modelo é hoje usado em quase todas as análises de ações feitas por ai. O método foi originalmente apresentado para ações em tese de doutorado de John Burr Williams, que inclusive viria a ser depois influência importante sobre Warren Buffett. Hoje, não há relatório de banco que não o apresente.
O que está por trás do famoso DCF? O valor de uma empresa é determinado pela soma de seus fluxos de caixa de hoje até o infinito, trazidos a valor presente por uma taxa de desconto apropriada. Até ai, tudo bem. Teoricamente, está perfeito.
A ideia é verificar qual seria o “valor justo” da ação e, sendo esse muito superior às cotações atuais, você compra. Se for inferior ou igual, você vende, indo atrás de algo mais atrativo no mercado.
Ele lhe serve, claro, supostamente para identificar oportunidades de investimento, capazes de gerar-lhe retornos anormais.
Qual é o problema? (Note que poderia citar vários, como a impossibilidade de prever o futuro – mas quero pegá-lo por sua falta de coerência interna; humildemente, entendo que essa minha crítica fere de morte o modelo DCF.)
Para trazer os fluxos de caixa a valor presente, você usa um negócio chamado WACC (custo ponderado médio do capital), a tal taxa de desconto apropriada. Seu cálculo exige, entre outras coisas, a estimativa do custo do equity, aquilo que os acionistas exigem de retorno para aquele ativo. Por sua vez, essa estimativa do custo do equity vem de um CAPM (Capital Asset Pricing Model).
Ocorre que o CAPM, para ser utilizado, requer a utilização da hipótese de mercados eficientes.
Ora, mas se os mercados são eficientes (se eles não forem, não tem CAPM, não tem WACC e, portanto, não tem DCF, ao menos da forma como normalmente se faz), todos os retornos são normais e os preços dos ativos são exatamente aqueles que deveriam ser quando ajustados por risco. Em outras palavras, não há oportunidades de lucros extraordinários. Sendo assim, não existe razão para sequer pensarmos em fazer um DCF. As oportunidades de retornos anormais estariam imediatamente eliminadas e o uso do modelo seria inócuo. Touché!
Acabou a chatice. Antes de ir às questões estritas dos mercados hoje, gostaria de fazer dois comentários:
1 – Ontem tive a oportunidade de ser apresentado aos pormenores do deal Itaú/XP – quero aqui agradecer formal e publicamente por isso. Como tratei do tema antes, faço questão de esclarecer um ponto. De fato, a independência, a agilidade e o espírito da XP parecem, ao menos no curto prazo, preservados. Evidentemente, os problemas práticos serão descobertos na prática. No dia em que você casa, é tudo lindo e maravilhoso. Um ano depois e aquilo parece passar rápido como cinco minutos…embaixo d’água. Brincadeiras à parte, a XP está hoje muito à frente das demais corretoras e isso precisa ser reconhecido – tiro o chapéu. Os problemas também são os mesmos: o research é ruim (para dizer o mínimo) e a essência do modelo carrega um conflito sintomático, que é o de pagar comissão para vendedor por colocação, distribuição, corretagem, etc – esse é um modelo superado no exterior e diametralmente oposto ao da Schwab, por exemplo.
2 – Se você assistiu ao programa Diálogos ontem do competente Mário Sérgio Conti, viu Gilberto Carvalho (desculpem, minha vida realmente não anda muito animada, principalmente nas noites de quinta-feira) defendendo de maneira fervorosa a eleição direta, “pois a indireta necessariamente implica a eleição de um programa que vai trazer a reforma da previdência e trabalhista; não importa a pessoa, qualquer que seja vem esse programa; pode até ser o Jobim, que é gente boa, mas o programa é esse ai das reformas se vier pela indireta, pois hoje eles têm a maioria no Congresso”. Pegou? Como a eleição direta parece improvável (embora eu não descarte nada neste País), o caminho das reformas parece mesmo inexorável.