Depois de um ano em que grande parte dos economistas previam uma recessão — que, como vemos, não aconteceu — 2024 deve ficar marcado por uma desaceleração no ritmo de crescimento dos Estados Unidos, maior economia do mundo.
De acordo com as estimativas do Bloomberg, o PIB nos Estados Unidos deve mostrar uma alta de 2,4% (com os dados do 4T23 sendo divulgados ao final desse mês), e neste ano deve apresentar um aumento de 1,3%. Outros órgãos multilaterais como o FMI e a OCDE mostram números similares.
Caso se concretize, estamos falando de uma redução relevante mas que não deve prejudicar substancialmente as atividades pela Terra do Tio Sam e, inclusive, ao redor do mundo.
Mercado de trabalho dos EUA é ponto de atenção
Dito isso, alguns pontos devem ser monitorados com cuidado, já que podem sofrer alterações substanciais e colocar em dúvida o crescimento ao longo de 2024.
O primeiro deles está relacionado ao mercado de trabalho americano. Na sexta (5) tivemos a divulgação dos dados de dezembro, que mostraram que 216 mil americanos entraram na força de trabalho, mantendo a taxa de desemprego nos 3,7% (ambos melhores que as expectativas de 175 mil e 3,8%, respectivamente).
Além disso, o aumento nos salários veio acima do esperado pelos economistas — 0,4% e 4,1% na leitura mensal e anual, ante projeções de 0,3% e 3,9%. Desde junho de 2021 que o crescimento anual dos salários não fica abaixo dos 4%.
É verdade que os números reportados em 2023 mostram uma queda no ritmo da criação de novos postos de trabalhos em comparação com os primeiros anos pós-pandemia, mas ainda assim o número total foi maior do que o observado nos anos anteriores a Covid-19.
Um dos pressupostos do “soft landing” seria exatamente esse: um esfriamento da atividade econômica, porém sem grandes impactos para os cidadãos (na forma de um aumento do desemprego). Até agora, tudo segue dentro do esperado.
O problema é que o emprego é um dos últimos indicadores a mostrar problemas na economia. Ainda mais considerando o período pós-pandemia, no qual muitos empregadores tiveram dificuldades em contratar pessoal para fazer frente à demanda de seus produtos e serviços.
Nesse caso, não seria exagero pensar que, antes da demissão de funcionários, as empresas prefiram reduzir a procura por novos profissionais, e manter a equipe atual enquanto for possível.
Os últimos números do JOLTS apontam algo nesse sentido. Apesar da razão entre vagas de trabalho abertas e empregados disponíveis ainda estar 1,4 — o que indicaria um mercado favorável aos profissionais —, o número atual é bem menor do que auge recente (quando atingiu 2).
Além disso, a deterioração dos números de emprego ocorre de uma maneira súbita antes de uma recessão. A expectativa é que, dessa vez, o Federal Reserve consiga arquitetar um pouso suave assim como em 1995 (pouco antes da bolha da Internet).
Situação das pequenas empresas também deve ser acompanhada com atenção
Neste caso, o acompanhamento da situação das pequenas empresas é importante para verificar a saúde da economia como um todo. Isso porque elas representam quase dois terços de todos os empregos gerados e, nos últimos anos, tem sido responsáveis por 44% da atividade econômica nos EUA.
Alguns números, entretanto, sinalizam um cenário no mínimo desafiador.
De acordo com o National Federation of Independent Business, a parcela de negócios que apresentaram vendas maiores nos três meses encerrados em novembro comparado com o período anterior está no menor nível desde julho de 2020. O índice de otimismo desses negócios também vem caindo nos últimos quatro meses, abaixo do patamar do auge da pandemia.
Figura 5. Pesquisa com pequenas empresas da NFIB | Fonte: NFIB
Já na parte de financiamento, dados do Bank of America Institute apontam que os empréstimos de cartão de crédito tem aumentado entre os pequenos negócios (mesmo se os gastos tenham permanecido estáveis), sugerindo que muitas empresas estejam recorrendo a essa linha de financiamento.
Segundo o instituto, 30% das empresas de pequeno porte estão utilizando cartão de crédito, e o nível de endividamento entre essas firmas aumentou 20% em relação aos anos antes da pandemia.
Muitos entendem que essas dificuldades enfrentadas pelos pequenos empresários devem impor ao Federal Reserve a necessidade de corte de juros, para evitar maiores problemas mais para frente.
Juros: para cima já deu, mas qual o limite para baixo?
Depois do aumento em maior intensidade dos últimos 40 anos, é possível afirmar que o Federal Reserve não deve levar os juros para patamares muito superiores ao atual (entre 5,25% e 5,5%).
Obviamente, não podemos descartar um novo aumento. Os números dos ganhos salariais (comentados na seção anterior) é um dos pontos que podem fazer o Fed mudar de ideia. Ou até mesmo o acirramento das tensões geopolíticas ao redor do mundo, que pode impactar, por exemplo, o preço do petróleo.
Apesar do Fed já ter sinalizado que deve reduzir a Fed Funds Rate para perto dos 4,5% — o equivalente a três reduções de 0,25 ponto percentual —, o mercado tem precificado que Jerome Powell e companhia podem cortar os juros até seis vezes em 2024 (próximo dos 4%).
Ainda assim, é possível verificar apostas ainda mais agressivas (e não necessariamente por bons motivos). Considerando o movimento usual de política monetária (de 25 pontos base), algumas instituições acreditam que o Fed deverá realizar cortes ainda maiores para chegar no patamar projetado para os juros ao final do ano.
Usando como o caso extremo — do UBS, que projeta cortes de 275 pontos-base, levando os juros para o intervalo entre 2,5% e 2,75% —, a instituição acredita que a queda na inflação permitirá ao Fed reduzir os juros em uma velocidade acima da usual.
Isso porque, de acordo com o banco, as taxas de juros reais (descontada a inflação) ficariam em um patamar altamente restritivo se o Banco Central americano realizar cortes normais (de 25 pontos-base). Contudo, os estrategistas também afirmaram que acreditam que a economia do país deva entrar em recessão no segundo trimestre do ano.
Apesar de ter um impacto na ponta curta da curva de juros, o patamar final da Fed Funds Rate acaba também sendo importante para os juros longos — aqueles que causam o maior impacto nos ativos de risco, sendo as taxas de 10 anos o balizador dos investidores de todo o mundo.
Importante lembrar que a estrutura da curva de juros é algo fluida e sofre variações todos os dias.
Porém, considerando os três patamares descritos no gráfico anterior, caso os juros longos permanecem nos níveis atuais, a curva de juros voltaria para uma configuração “normal” (juros mais curtos pagando menos que os vencimentos mais longos) se a Fed Funds Rate fosse para baixo das projeções do mercado.
Até é possível que a curva se “normalizasse” nos cenários traçados pelo Fed e pelo mercado, mas para tal seria necessário que os juros longos aumentassem dos patamares correntes. Contudo, entendo que essa hipótese, caso ocorresse, seria prejudicial para os ativos de risco.
E aí entramos em um ponto mais técnico da curva de juros, relacionando oferta e demanda por esses títulos.
Do lado da oferta, as projeções do Treasury Borrowing Advisory Committee (responsável por assessorar o Tesouro americano nas questões relacionadas à emissão de dívida) apontam que os leilões de títulos devem aumentar, em média, 23% em 2024 em comparação a 2023.
Já do lado da demanda, apesar dos dez maiores detentores estrangeiros terem aumentado levemente suas posições nos Treasuries em outubro na comparação com o mesmo mês do ano passado, ainda temos que observar como a China (por conta das tensões geopolíticas com os EUA) e principalmente o Japão vão atuar nesse mercado em 2024.
O caso da Terra do Sol Nascente fica ainda mais complexo considerando que o Banco Central do país é o único que ainda não saiu dos experimentos com juros negativos (impostos pós-crise financeira de 2008).
Caso o Bank of Japan, atualmente comandado por Kazuo Ueda, decida por retornar os juros para o campo positivo, é possível que parte dos recursos investidos no exterior volte para o Japão.
Ainda que Jerome Powell tenha dado um cavalo de pau no seu discurso na última reunião do ano passado — passando a debater também os impactos do aumento ou manutenção dos juros na economia real, e não somente na inflação —, não podemos esquecer que tanto o mandatário do Fed como outros membros por muito tempo reforçaram a preocupação de não criarem as condições para uma reaceleração da inflação.
É verdade que os últimos números dos níveis de preços foram encorajadores, com algumas métricas já tendo retornado para a meta de 2% determinada pelo Federal Reserve.
Porém, outros indicadores ainda continuam bem acima desse patamar, o que deve manter a cautela do Banco Central americano para cortes mais substanciais na Fed Funds Rate.
Mesmo que seja uma amostra pequena, é fato notar que a única vez que o Fed cortou os juros quando o núcleo do CPI estava acima da taxa de desemprego foi na década de 70 — nos episódios dos choques de petróleo daquele período.
Apesar do recuo inicial da inflação, a continuidade na queda da taxa de desemprego fez com que os preços voltassem a subir com força na metade final da década — demandando juros ainda maiores do que os observados anteriormente.
Obviamente não podemos desconsiderar que a relevância da OPEP naquela época é muito maior do que a atual, o que pode indicar um menor impacto nos níveis de preço atualmente.
Mas caso os conflitos geopolíticos ganhem mais corpo — ou até mesmo o surgimento de outros —, também não podemos descartar o impacto que isso pode ter nas expectativas para a inflação nos próximos meses.
E como isso tudo deve se refletir na bolsa dos EUA?
Ainda que o sentimento mais positivo tenha dominado os mercados, principalmente no final do ano, fato é que a grande parte dos ganhos de 2023 veio por conta da expansão dos múltiplos.
A queda de quase 20% no S&P 500 no ano anterior fez com que o índice se aproximasse da marca de 16 vezes seus lucros logo no começo do ano. E, mesmo com as novas altas nos juros, esse múltiplo encerrou 2023 acima das 22 vezes.
Por outro lado, os resultados das companhias, se não demonstraram uma grande piora (condizente com o cenário de recessão que era altamente esperado por parte do mercado), também devem entregar um crescimento bem abaixo da média histórica observada desde o início da década de 90.
Supondo que os resultados do quarto trimestre — que tem início agora em meados de janeiro — surpreendam para cima, é difícil imaginar que o lucro por ação do S&P 500 fique muito acima do resultado projetado atualmente (US$221/ação).
E para 2024, as projeções dos analistas apontam que esse lucro por ação deve apresentar um aumento de 10%, chegando na casa dos US$243/ação — e de mais 11% no ano seguinte, aos US$270/ação.
Assumindo esses valores, e fazendo uma sensibilidade entre o lucro por ação e o múltiplo projetado para o S&P 500, um ano de retorno de dois dígitos para o principal índice da Bolsa americana só deve vir caso o aumento nos lucros seja maior do que o precificado no mercado, ou se continuarmos vendo uma expansão do múltiplo ao longo de 2024.
Contudo, considerando a relação entre o múltiplo Preço/Lucro projetado e a taxa de juros nominal de 10 anos dos últimos 20 anos, a chance de uma expansão dos múltiplos me parece remota.
Mesmo assumindo que a taxa de 10 anos permanecesse nos 4% atuais, essa relação indica que o múltiplo justo do S&P 500 estaria na casa das 16 vezes.
Não acredito que veremos o índice recuando para esse nível, ao menos que tenhamos um cenário econômico mais complicado. O surgimento de novos tipos de negócios, com receitas mais recorrentes, aliado a grande quantia de recursos ainda em renda fixa de curto prazo talvez funcione como um colchão para quedas mais profundas do mercado.
Só que também não acharia absurdo se alguém trabalhasse com a hipótese do S&P 500 recuar para a casa das 18 vezes seus lucros projetados — mais próxima da sua média desde 1991.
Neste caso, prefiro iniciar 2024 com pesos maiores em empresas que estejam com múltiplos menos esticados (em alguns casos, abaixo da média de mercado), além de retirar teses que negociam a múltiplos mais altos.
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