Day One

A odisseia: dólar, petróleo e otras cositas más

“Sobretudo agora com este rali do petróleo diante do novo corte da Opep, o dólar, objetivamente, não tem sido um bom hedge”

Por Felipe Miranda

03 abr 2023, 11:08 - atualizado em 03 abr 2023, 11:08

Que Ulisses foi um camarada corajoso e um grande guerreiro parece ser consenso. Agora, me surpreende o quanto o cidadão foi visionário, sujeito de vanguarda, capaz de alinhar-se ao autocomprometimento físico, aquela barreira material autoimposta recomendada por psiquiatras e psicanalistas para se evitar o consumo excessivo de substâncias ou comportamentos de alta dopamina, com alto poder viciante e, na maior parte das vezes, bastante deletérios.

Voltando da guerra de Troia, sabia dos perigos de se ouvir o canto das sirenas, aquelas criaturas aquáticas sedutoras, que atraíam marinheiros para o fundo do mar a partir de suas melodias irresistíveis. Para escapar da tentação, Ulisses ordenou a introdução de cera de abelha nos ouvidos dos tripulantes e forçou sua própria amarração ao mastro do veleiro. 

Como explica a Dra. Anna Lembke, psiquiatra e professora da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, “uma forma de autocomprometimento é criar barreiras físicas literais e/ou distância geográfica entre nós mesmos e a nossa droga de escolha.” Se você gasta demais, talvez tenha de cancelar o cartão de crédito e usar apenas dinheiro. Se é um alcoólatra inveterado e vai viajar, possivelmente seja prudente pedir ao hotel para retirar o frigobar do seu quarto. Se não consegue sair do celular, quem sabe a única saída seja colocá-lo dentro de um cofre a partir de determinado horário do dia.

A mesma lógica poderia valer para determinados vícios e comportamentos financeiros, diante de sirenas capazes de emitir cantos e narrativas sedutoras para nos empurrar ao fundo do mar.

Cerca de um século atrás, ali pelos fins de 2022, só havia uma conversa inteligetinha: vamos tirar nosso dinheiro do Brasil e correr para as montanhas do dólar. O movimento foi geral, de gente muito rica atendida pelos multi family offices aos investidores de varejo, numa corrida em direção às corretoras com acesso ao mercado internacional. 

Passamos pelo primeiro trimestre do ano e o dólar saiu de R$ 5,28 para R$ 5,07. Houve quem ganhou dinheiro, claro: as corretoras com acesso ao mercado internacional e as empresas que montam estruturas em BVI.

Há algumas nuances da história do dólar. Existe um certo consenso no exterior de um ano favorável para mercados emergentes, o que historicamente significou dólar mais fraco. Modelos econométricos construídos de várias maneiras apontam um valor justo do dólar em torno de R$ 4,60/R$ 4,80. É natural haver algum prêmio, sobretudo em momentos de muita incerteza local, como o atual. No entanto, com o carrego muito alto, dado que o juro por aqui não deve cair muito e tão cedo, o peso das variáveis financeiras no curto prazo acaba sendo maior do que os fundamentos do mercado de bens – apenas uma variação do já antigo modelo de overshooting do Rudi Dornbusch. 

Diante de um carrego tão alto e com commodities mais caras, sobretudo agora com este rali do petróleo diante do novo corte da Opep, o dólar, objetivamente, não tem sido um bom hedge. Em 2023, esse papel tem sido bem desempenhado pelo caixa (o CDI é um maratonista incansável, que corre bem rapidinho, embora seja pouco sedutor a priori), pelo ouro e, talvez surpreendentemente, pelo bitcoin, diante da sinalização de fim iminente do ciclo de alta de juro nos EUA e do temor com o sistema bancário norte-americano, o que aumenta o apelo das finanças descentralizadas.

Por falar em petróleo, eis outra narrativa sedutora recente que acaba de cair. A ideia era de que a crise bancária norte-americana trazia um aperto monetário não-deliberado e, com isso, seja inevitável uma recessão nos EUA, com consequências marcantes sobre o preço da commodity. Ocorre que o mercado já estava bastante apertado, sofrendo com dificuldades para expandir a oferta. Em adição, os EUA precisavam (e ainda precisam!) recompor sua reserva estratégica e sempre contamos com a possibilidade de, num mercado oligopolizado, o cartel resolver controlar a produção. “Gradually, then suddenly”, para citar Hemingway pela enésima vez. As coisas parecem calmas, até que subitamente mudam por completo.

O petróleo sobe quase 7% enquanto escrevo. O mercado corre para comprar petroleiras e vender o que é sensível a taxas de juro, possivelmente mais altas diante da inflação gerada pelo combustível mais caro. Tudo que é growth (crescimento) cai, bancos sobem com juros maiores. Volta o case, ao menos temporariamente, do reflation trade (compramos o que gera caixa no presente, vendemos o resto).

Pequena ressalva sobre fintechs no Brasil: mercado misturou muito joio e trigo. Há coisa que realmente não deveria estar em Bolsa, fake techs inviáveis financeiramente. E há coisas boas, que apenas estavam caras. Veja Méliuz: acaba de materializar a venda do Bankly e formalmente afirma se preparar para um grande provento extraordinário usando essa grana. Se vier o valor total, seria uma distribuição de R$ 210 MM, cerca de 25% de yield.

Voltando ao assunto central, por aqui, as empresas juniores de petróleo devem ser as mais beneficiadas, com destaque para PetroRio e 3R. A primeira não tem posições de hedge relevantes e pega na veia o incremento do óleo. A segunda tem maior lifting cost (custo de extração) e, por isso, tem maior sensibilidade e alavancagem operacional a partir de variações da commodity subjacente. Sobre Petrobras, já fica aquela dúvida. Um petróleo muito barato é ruim, mas muito caro pode ser ainda pior. Política de preços vai enfrentar seu primeiro teste de fogo. Se o mercado notar alguma intervenção mais direta e mudança importante no apreçamento dos combustíveis, de-rating pode ser grande. Minha preferência é por 3R, mais barata, com sólido prognóstico de crescimento da produção e com o trigger de curto prazo de materializar operação de Potiguar. 

Como segunda derivada, as empresas de distribuição de combustíveis também podem se beneficiar, com marcação a mercado positiva à frente. Há poucos meses, ninguém queria e agora a narrativa também começa a mudar.

A melhor recomendação para o segundo trimestre talvez seja passar cera de abelha nos ouvidos.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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