O caso foi verdadeiro. Aconteceu há uns poucos meses. Os termos não foram exatamente esses, nem os números, mas a essência da frase era esta: “se tivéssemos reduzido a taxa de 15,5% para 15%, o investidor teria comprado mais.”
Parece contraintuitivo, claro. Fere a noção elementar da curva de demanda: quanto maior o preço (no caso, menor a taxa), menor deveria ser a procura. A dinâmica revela um mau funcionamento do nosso mercado. Por que o investidor teria comprado mais a uma taxa menor pra ele?
A frase carrega implícita e tacitamente a ideia de que esses 50 pontos-base de “excesso de retorno” poderiam ter sido transferidos ao canal de distribuição. Com assessores abocanhando uma fatia maior do bolo, teriam se engajado mais na venda. Como essa gente é muito bem treinada em “assessorar” os clientes (alguns diriam “empurrar” produtos a eles), a calibragem da esteira de vendas teria garantido uma colocação maior.
Não tenho muitas dúvidas de que avançamos bastante quando migramos do chamado modelo 1.0 da indústria financeira, centralizado quase exclusivamente nos bancões, para aquele 2.0, marcado pela abertura das plataformas e acesso dos clientes a uma maior gama de bons produtos financeiros.
Há, no entanto, algo tipicamente esquecido sobre novas tecnologias ou paradigmas sociais, culturais e de mercado. Ainda que a nova dinâmica seja, no geral, muito mais positiva, isso não quer dizer a inexistência de problemas ou perdas em situações particulares e locais. Veja o caso da internet, por exemplo. Estou certo de que ela foi incrivelmente boa em termos gerais, mas também significou perda de profundidade e capacidade de concentração das pessoas, redução da erudição, maior ênfase em comportamentos tribais e, nas palavras de Tom Nichols, “a morte da expertise”. Como disse certa vez Umberto Eco, “as redes sociais deram voz aos imbecis.”
Esse, inclusive, é também um problema específico para o nosso mercado. Não à toa, está em curso consulta pública sobre influenciadores digitais, que, deliberadamente ou não, muitas vezes determinam a decisão de investimento de seu seguidor — ou alguém acha que o cidadão acompanha uma determinada live no Instagram por mera curiosidade intelectual? Ele quer orientações para aplicar seu dinheiro, oras. Assim, na prática, muitos influenciadores exercem atividade de análise de investimento ou acabam fazendo parte do canal de distribuição de uma plataforma ou de um produto — não é coincidência a matéria da semana passada no Valor Econômico de título: “CVM tenta encorajar influenciador financeiro a se tornar analista, diz presidente da autarquia”.
Aqui também reside uma distorção. Os incentivos financeiros apontam no sentido contrário, inclusive. Se você é analista, deve obedecer a um arcabouço regulatório e a um código de ética (adequadamente, diga-se), que, entre outras coisas, veda a negociação de ações numa determinada janela temporal. Agora, se você não é analista, está livre de restrições. Na prática, muitos ancoram-se casuisticamente no pressuposto da liberdade de expressão para realizar análise de valores mobiliários, sob um disclosure qualquer do tipo “isso não é recomendação”. Enquanto influenciam diretamente seus seguidores na tomada de decisão de investimento, continuam negociando para si as ações e/ou geram corretagem ou RLP para uma determinada instituição financeira. Se ele se tornar analista, perde tudo isso.
Proponho uma reflexão genuína: ao assistir a um conteúdo na internet, em que um influenciador elucida todos os pontos positivos de uma determinada ação e sugere uma alta vigorosa para aquele ativo, será que o investidor não se vê imbuído a comprar aquilo, com o mesmo ímpeto que teria se tivesse ouvido diretamente a expressão “recomendo a compra de ABCD4”? A rosa teria o mesmo cheiro se tivesse outro nome. Como já escrevi certa vez, o maior inimigo das casas de análise hoje são as salas de trade, uma espécie de faroeste bang-bang, onde bebê chora e a mãe não vê.
Volto ao problema específico do canal de distribuição. Pela própria arquitetura escolhida pelo modelo 2.0, contratamos uma série de novas adversidades para o investidor. A essência do 2.0 assenta-se na figura do assessor de investimentos ou agente autônomo — claro que você pode ter um esforço aqui ou ali de distribuições totalmente digitais, B2C, em que não há esse intermediário, mas qualquer observação objetiva da realidade aponta para a concentração da distribuição nessa figura.
Houve, assim, uma grande transferência de valor ao longo da cadeia para o distribuidor, com todas as suas virtudes, mas, também, com seus vícios. Nele, no distribuidor, ou seja, no vendedor, também habitam o médico e o monstro, como em cada um de nós. A questão central é que, num ambiente de assimetria de informação e pouca transparência, o monstro costuma sair na madrugada escura e disfarçado. É difícil notar o lobo atrás da porta, quando ele está vestido em pele de cordeiro e se coloca como alternativa ao vilão clássico: o bancão, que é o malvado favorito de 10 em cada 10 conversas de bar pseudointeligentes sobre investimentos.
Aí caímos num antagonismo maquiavélico simplista: de um lado, temos o arcaico banco tradicional com a figura do gerente; do outro, a plataforma moderna com o assessor de investimento. A blusa de lã marrom com losangos em vermelho e creme, parcialmente escondida pelos cabelos que escorrem pelos ombros, com pontas secas e escurecidas pelo cigarro, que Dona Marlene veste diariamente na gerência de sua instituição bancária mesmo em dias de verão (porque não tolera o ar condicionado) comparada ao coletinho “descolado” da Moncler, aos convites para o camarote da Fórmula 1 e aos imperdíveis encontros na piscina de onda no interior paulista.
As Finanças Comportamentais já nos ensinaram sobre o tal “halo effect” (halo se refere à auréola tipicamente apresentada sobre a cabeça dos anjos), em que identificamos uma característica boa em determinada pessoa, coisa ou situação e transbordamos a virtude particular para algo geral. Se uma mulher é inteligente e educada, logo ela será percebida também como trabalhadora, disciplinada, pontual, generosa… pode até ser, mas não é uma consequência lógica, embora nosso cérebro rapidamente empurre na direção dessa conclusão.
Transferimos um poder enorme para o vendedor de produtos financeiros nos últimos anos e colocamos uma auréola de anjo em cima dele. Pagamos generosos fees nas distribuições de CRIs, CRAs, LCIs, LCAs e LIGs. Essas coisas não têm volatilidade e transmitem uma falsa sensação de segurança para o investidor, porque sua carteira não pula. Ele não faz a menor ideia de qual crédito realmente está na sua carteira, mas estamos todos mais interessados nas dancinhas, nos Reels e na Yasmin Brunet, não é mesmo?
Enquanto isso, estamos matando a indústria de fundos, que sofre resgate mês após mês, e deixamos a Bolsa brasileira como um quintal do gringo, ao completo sabor da sensibilidade frente ao yield dos Treasuries de 10 anos… e nada mais importa.
O que vai acontecer quando acabar o lastro dessas incentivadas ou um Marcos Pinto da vida resolver eliminar essa bizarra distorção? Quem poderá nos defender? Sei lá, deve ser o Tadeu Schmidt.