Day One

Carta a um jovem analista

Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão. Você estaria procurando neste texto alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar analista de investimentos. E estaria perguntando: será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo?

Por Felipe Miranda

05 abr 2021, 01:12

Meu jovem amigo,
 
Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão. Você estaria procurando neste texto alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar analista de investimentos. E estaria perguntando: será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo?
 
É uma ótima pergunta. Para ser bom analista, é útil que a gente possua alguns traços de caráter ou de personalidade que, dito aqui entre nós, dificilmente podem ser adquiridos no decorrer da formação: melhor mesmo que eles estejam com você desde o começo.
 
A esta altura, talvez você já tenha percebido: eu me correspondo com esta newsletter usando como referência o livro “Cartas a um jovem terapeuta”, do Contardo Calligaris, me apropriando do título e de seu começo para nossa conversa.
 
Primeiro para servir de uma espécie de pequena homenagem e demonstração de minha gratidão ao Contardo. Aprendi muito com ele, em seus textos, palestras e cursos. Até mesmo suas ideias sobre imanência e transcendência me são úteis nas escolhas intertemporais de investimento. Falei mais de minha admiração no último episódio do podcast Empiricus Puro Malte.
 
Também gostaria de agradecê-lo pela generosidade com que nos atendeu em um dos eventos de aniversário da Empiricus. Almoçamos juntos naquele dia e conversamos sobre várias coisas, de ideias para o Brasil a passeios de moto, preferências musicais e jeitos de cuidar do dinheiro. 
 
Por mais que tenhamos estado juntos presencialmente só uma vez, eu o tinha como um amigo, dada sua influência intelectual sobre mim, ainda que ele jamais tenha sabido da nossa rica amizade unilateral. Foi também nesse dia que, de algum modo, sem que isso também possa expressar uma proximidade além daquela que temos de fato, estabeleci uma relação com a Maria Homem, que muito admiro — tenho a esperança de que ela possa ser revisora do meu próximo livro, uma adaptação para crianças do “Princípios do Estrategista”. Para minha alegria, já houve um aceite informal e eu espero que ela possa ser acalentada neste difícil momento da partida. Para mim, educação infantil — e incluo, claro, a educação financeira como parte importante disso — é coisa séria, de modo que fiz questão de que o livro fosse submetido a um(a) psicoterapeuta antes de sua publicação.
 
O segundo motivo de me referir explícita e tacitamente a “Cartas a um jovem terapeuta” é que entendo que a própria leitura do livro poderia lhe ser útil para sua formação como analista e investidor.
 
Explico.
 
Há características recomendáveis a um terapeuta que se estendem também a um analista de investimento. Sejamos sinceros: empresas, em última instância, são pessoas. Este será o grande diferencial, em especial num mundo que muda tão depressa: a capacidade humana de reagir e se adaptar a um novo cenário. Portanto, o analista — seja ele de pessoas ou de empresas, que no fundo é a mesma coisa — terá de ter uma sensibilidade desenvolvida, dispondo, ele mesmo, de elementos de observação e empatia social.
 
Claro que você também vai precisar do conhecimento do instrumental teórico clássico das finanças, do domínio das técnicas de valuation, da capacidade de operar planilhas, do rigor formal do cálculo matemático e da disciplina estoica para atualizar modelos quantitativos razoavelmente pesados. Mas, sejamos sinceros, depois da Wikipédia e do Excel, isso virou ciclo básico. Quaisquer poucas horas à frente do Google e do YouTube perfazem esse escopo. O diferencial mesmo não virá daí. Conta e tabela todo mundo sabe fazer. O preenchimento de planilhas não gera inteligência.
 
Recorro a algumas ideias do próprio Contardo sobre características desejáveis para um terapeuta. Eu as adapto para o contexto dos investimentos.
 
Contardo faz um primeiro alerta importante: o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espécie de gratidão que, em geral, é reservada ao médico. Talvez essa seja uma dinâmica mais geral. Lembro-me de Kafka: “Você conhece a gratidão dos filhos…”. Essa é mesmo uma virtude rara. O analista não deve esperar gratidão de seus leitores. Se o investidor seguir sua recomendação e der certo, o mérito será sempre do investidor. Já se der errado, culpa do analista, claro. E lembre-se: muitas vezes, vai dar errado. Todos nós erramos, todos os dias. Freud dizia que há três tarefas impossíveis: educar, governar e analisar — aqui, ele fala de analisar no sentido psicanalítico, mas bem que poderia transpor-se também para o contexto dos investimentos. Teria sido um ato falho de seu inconsciente, antevendo o “financial deepening” em mais de um século?
 
Haveria, segundo Contardo, quatro traços de caráter a serem procurados em quem quisesse se tornar psicoterapeuta: 

  1. “Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por mais diferentes que sejam de você.” No nosso contexto, vale para pessoas e para empresas. Até Warren Buffett já manifestou a importância do apreço pela palavra, dizendo que saber escrever costuma ser um diferencial importante do bom investidor (ou analista/gestor). Mais do que isso, há uma coisa fundamental: capacidade de interlocução. Você só terá acesso à informação de qualidade, que é a fonte primeira de geração de retornos extraordinários, a partir da conexão com as pessoas certas, seja dentro das empresas, seja com outros gestores, analistas, políticos. Essa capacidade de criar laços é relevante. E ela precisa ser genuína, com pessoas e com as companhias. Não há espaço para atitudes do tipo “essa empresa do setor elétrico é muito diferente da Empiricus; não gosto dela e, portanto, não vou recomendar”. Não se permite o narcisismo das pequenas diferenças em Bolsa. Você precisa manter uma perspectiva aberta e aproximar-se das empresas, de qualquer setor ou ramo de atividade, de forma empática e até mesmo carinhosa.

  2. “Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito. Você pode ter crenças e convicções. Aliás, é ótimo que você as tenha, mas, se essas convicções acarretam aprovação ou desaprovação morais preconcebidas das condutas humanas, sua chance de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida, para não dizer nula.” Você precisa ser profundamente curioso para descobrir algo que o mercado ainda não colocou no preço do respectivo ativo. E deve aplicar essa curiosidade sem nenhum tipo de preconceito. Você pode ser um liberal convicto — como é o meu caso. Mas não deveria impedir que sua descrença no Estado como gestor contaminasse eventuais decisões sobre investir em estatais, quando os preços se mostram especialmente convidativos. Você pode ter perdido muito dinheiro com telecom no passado, mas não deve permitir que isso seja um bloqueio para novas investidas no setor — ao contrário, a experiência pregressa pode servir de guia para evitar novos percalços e identificar o que faltou daquela vez e pode estar presente agora.

  3. “Além de uma grande e indulgente curiosidade pela variedade da experiência humana, eu gostaria que o futuro terapeuta tivesse, nessa variedade, uma certa quilometragem rodada.” Dificilmente você vai conseguir separar uma real boa oportunidade de uma ruim se não tiver certa vivência. Do sublime ao ridículo é só um passo. Do “value” ao “value trap” também. Da persistência à teimosia, idem. Inteligência de rua conta. Pode parecer ridículo mas, embora não possa provar isso cientificamente, carrego uma suspeita forte de que experiências sexuais, etílicas (ou qualquer outra substância de sua preferência, sem preconceitos), coletivas, esportivas e de liderança compõem um rico repertório para a formação de um grande investidor. Desenvolve-se intuição, que é a capacidade de reconhecer padrões — ora, como identificar um padrão se você nunca viveu aquilo? Quanto mais experiências, em profundidade e amplitude, melhor… Como resume Contardo, “gostaria que a capacidade de considerar a variedade das vidas e das condutas com carinho e indulgência viesse ao terapeuta da variedade animada da sua própria vida”. Meninos de apartamento, criados à base de leite com pera, herdeiros, cintos combinando com o sapato… essas coisas podem dar certo, claro, mas a chance é menor. Uma mente aberta, estimulada por uma experiência humana plural, ajuda. Street smartness não se aprende na Wikipédia.

  4. “O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está ‘muito bem, obrigado’.” Aqui vale literal e metaforicamente. Sob a ótica literal, a sensibilidade, já demonstrada como importante para identificar boas oportunidades de investimento nas linhas acima, dificilmente será desenvolvida sem alguma dose de sofrimento psíquico. Como metáfora, o sofrimento para o investidor é o prejuízo financeiro. É improvável ser um grande investidor se você não acumula uma série de prejuízos. Só há um analista/gestor/investidor imaculado: o iniciante, aquele que nunca fez nada. Os erros, as cicatrizes, as costas marcadas de tanto apanhar são demonstrações de anos na estrada, do acúmulo de experiência que o prepara para a situação posterior. São os equívocos pretéritos que pavimentam a via para o acerto futuro. No pain, no gain.

Se você preenche os pontos de 1 a 4, então, bem-vindo ao clube: talvez a análise de investimentos seja uma profissão para você.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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