Day One

Carta ao Presidente

De algum modo, materializo hoje uma conversa que já tive algumas vezes comigo mesmo.

Por Felipe Miranda

23 dez 2024, 11:10 - atualizado em 23 dez 2024, 11:10

carta ao presidente

Imagem: iStock.com/Iuliia Pilipeichenko

Excelentíssimo senhor presidente,

Não tenho pretensão de que o senhor venha, de fato, a ler esta carta. Até confesso uma expectativa ingênua de que, num daqueles cisnes negros ou cinzas de Nassim Taleb, numa sucessão de encaminhamentos por e-mail ou WhatsApp, este documento possa um dia vir a encontrá-lo. Mas não é essa minha real perspectiva. É um exercício platônico a princípio, que nos ajuda a pensar o Brasil.

Reconheço no senhor, entre outras virtudes, a capacidade de contar boas histórias. Arrisco-me, então, por essa via, já ciente de que, aqui ou ali, este texto pode transmitir uma proximidade que não temos, nem nunca teremos. Sei meu lugar no mundo. Mas o senhor é sempre tão espontâneo e empático em suas interações que parece autorizar essa aproximação. Desde que assisti a “Entreatos”, me vi algumas vezes esboçando um diálogo mental com o senhor. Até tentei tangibilizá-lo certa vez, quando pretendia realizar “Uma Conversa pelo Brasil”, mediando um debate entre o senhor e Fernando Henrique Cardoso. Conversei longamente com Paulo Okamoto. O senhor pode conferir com ele. Por alguma razão, não foi pra frente. Lamento, pois entendo que seria muito rico, um documento histórico.

De algum modo, portanto, materializo hoje uma conversa que já tive algumas vezes comigo mesmo.

Eis um causo verdadeiro para começarmos:

Por alguns anos, convivi com um grande executivo, líder de reestruturações profundas nas maiores empresas do Brasil. Ficou tão reconhecido e renomado que virou empresário, montou sua própria consultoria. Foi conselheiro de banco grande. Olha, posso lhe dizer: era um notável. Como eu admirava aquela inteligência, a altivez e a retidão. Deu-se muito bem financeiramente também — ao menos por um tempo. Acumulara patrimônio de R$ 150 milhões, até que…

A última esposa tirou-lhe tudo. A confiança nos amigos, a convivência com os filhos, o ouvido dos conselheiros mais sábios e próximos (ah, como eram importantes!), os prazeres individuais e, claro, o dinheiro. Ela preparava um tipo de chá especialmente viciante, que, imagino, o senhor, assim como eu, deva conhecer também. Perigosíssimo. Um tipo de feitiço capaz de convencer-lhe de que apenas ela era capaz de cuidar dele e só ela o amava. Ao adicto, só importa o vício.

Ao final, meu amigo empresário, que eu tanto admirava, morreu com R$ 20 milhões de dívidas. A família precisou socorrê-lo financeiramente para pagar a conta no Einstein.

É uma anedota particular na tentativa de promover uma reflexão mais geral. Tio meu sofreu do mesmo mal.

Isto me parecia impensável há alguns anos, mas devo confessar-lhe: sinto saudades de Dona Marisa. Tudo bem, ela tinha um gosto meio peculiar para imóveis no Guarujá, mas, dadas as circunstâncias e tudo que se seguiu, essa é uma questão quase irrelevante, vira uma nota de rodapé.

Reconheço, presidente, como deve ser difícil equilibrar-se entre o militante de esquerda e o presidente, historicamente, pragmático. Mas escrevo-lhe fundamentalmente porque encontro uma brecha para isso. Há um espaço retórico para que o senhor comece a respeitar a aritmética elementar das contas públicas sem precisar se afastar de sua base eleitoral. Uma oportunidade talvez única para que o senhor recomece este governo. 

Dois pilares estruturantes fundamentariam sua narrativa. 

O primeiro é de cunho mais pessoal. O senhor acaba de passar por risco de morte. Isso pode mudar a perspectiva de vida de qualquer um. Ninguém quer morrer com rancor ou ressentimento do pai, da mãe, do irmão. Todos são capazes de entender isso, porque, de algum modo, vivenciaram algo semelhante na própria família. Segredo nosso, presidente: eu mesmo gostaria de ter tido uma última conversa com meu pai, para sublimar certas divergências. Não pude tê-la, o que me custou alguns anos e milhares de reais em terapia. Para um político, ainda mais da dimensão do senhor, encerrar a jornada de forma ressentida com metade da população não me parece o fechamento que todos mereciam. O clima de Natal é propício para isso, dê a outra face mesmo a seus críticos vorazes. O “Lula Paz e Amor” governando como o Ubermensch de Nietzsche, acima desse discurso polarizado idiota de uma guerra do bem contra o mal. O senhor leu o Eduardo Giannetti hoje no Estadão? Implemente no governo (e não apenas na eleição) a ideia da Frente Ampla, acolhendo também o outro lado. Mandela brasileiro. Por que descer ao nível de seu adversário derrotado colocando-se como antagonista numa briga que já foi ganha?

O outro é menos pessoal. Obedece a uma espécie de materialismo histórico. Estamos chegando à metade do seu governo. Adote o discurso de que cumpriu o objetivo nesses primeiros dois anos. Reduziu a miséria e salvou a democracia brasileira de minutas capazes de nos lembrar que “Ainda estou aqui” é muito mais do que um belo filme, mas também um recado a respeito da sobrevida de alguns de nossos fantasmas. Feito isso, superadas essas questões fundamentais, o senhor poderia iniciar uma nova fase, cuja essência juntaria responsabilidade fiscal à social — afinal, é impossível haver, de maneira sustentada, a segunda sem a primeira.

Colherá os frutos políticos disso. Talvez o senhor ainda não tenha tanta clareza sobre o processo, mas a verdade é que não há opção. Os poucos conselheiros que lhe restaram, os falsos amigos incapazes de dizer que “o rei está nu”, podem insistir em dizer: está tudo bem. A economia cresce a bom ritmo, o desemprego está baixo, a inflação não disparou. A confiança do consumidor está alta, o índice de miséria (soma da inflação e do desemprego) lhe é favorável e sua popularidade se mantém em níveis competitivos. Na dicotomia que existe entre Main Street e Wall Street, a segunda costuma estar certa, porque consegue olhar em perspectiva. A foto não condiz com o filme. “Eu sou você amanhã”, para usar as palavras de um gestor consagrado.

Com o dólar acima de R$ 6, indo para R$ 7 ou R$ 8 rapidamente se as coisas não mudarem, a inflação de 2025 deve ser superior a 6%. A curva de juros aponta Selic terminal acima de 16%. Não sei se chegará a tanto, mas o aperto monetário em curso vai bater na atividade. O desemprego aumenta. Já temos contratado um incremento do índice de miséria. É inexorável. A inflação já vai subir. E se o senhor tentar impedir o aumento do desemprego, mantendo o pé na tábua fiscal, só vai jogar querosene nessa fogueira, pois ficará ainda mais claro que a dívida é insustentável. O dólar vai disparar. Perderemos a moeda e a inflação virá a galope.

Não haverá como manter sua popularidade. Diante de uma sociedade muito dividida, de uma marcha mais à direita nas eleições municipais, de um zeitgeist contrário ao incumbente e à constelação de progressismos adotada pela esquerda (veja Milei ou Trump; ou mesmo o que deve acontecer no Canadá, no Chile e na Colômbia — a exceção é o México), a continuar dessa forma, o senhor (ou seu indicado) perderá as eleições. 

Talvez, percebendo a derrota, o senhor nem concorra em 2026. Dirá que ganharia se concorresse, mas a saúde e/ou a idade avançada lhe tiraram do pleito. Como a história não tem o contrafactual, a afirmação será não-falseável. Assim, poderá, quem sabe, salvar o lulismo para além do Lula, mas não conseguirá salvar a si.

Está previsto um pronunciamento do senhor hoje na TV. Espero que vá na direção da “União Nacional”, sem o sectarismo do “nós contra eles”, sem os ataques difusos, inférteis e mentirosos sobre a Faria Lima ou “o mercado”, um inimigo sem rostos.

Sinceramente, mesmo se for por esse correto caminho, ainda será pouco. Primeiro pela simples razão de que palavras não pagam dívidas. O senhor saiba: não há mais o benefício da dúvida. Qualquer vestígio de credibilidade foi embora. A situação só será corrigida com medidas concretas, tangíveis e críveis.

Os acontecimentos recentes arrastaram também a credibilidade do ministro Haddad. Não por incompetência dele ou falta de vontade individual, mas pela percepção de que, no final do dia, qualquer ministro é fraco diante do senhor. Este governo é essencialmente personalista e a mudança real há de vir do Presidente, na comunicação explícita e nas medidas concretas apoiadas pela sua figura.

O segundo ponto para irmos além do pronunciamento de hoje: palavras faladas dizem menos do que o registro por escrito. “Verba volant, scripta manent”…. O senhor se lembra do peso dessas palavras.

Escreva uma “segunda carta ao povo brasileiro”. Aqui está entre aspas por deliberação e rigor. Precisa ser com este título mesmo, para suscitar a associação imediata com a primeira. O conteúdo será conhecido a partir do próprio título, sem nem precisarmos ler.

Nela, o senhor poderá apoiar-se sobre os dois pilares supramencionados, explicitando como a segunda metade do seu mandato terá uma postura de Estadista. Para isso, precisaremos cuidar do Brasil para além de seu mandato. As futuras gerações herdarão uma dívida controlada e uma moeda capaz de preservar valor. Por isso, o senhor fará um plano fiscal criterioso, rígido e amplo, com vistas a estabilizar rapidamente a trajetória dívida sobre PIB. Coloque essa meta em pé de igualdade com a redução da miséria (afinal, elas são mesmo correlacionadas).

Explicite um objetivo maior: recuperar o investment grade, conquistado no seu governo lá atrás e perdido posteriormente. Reconheça a dificuldade da conquista, mas coloque seu capital político a favor dela, apontando medidas concretas em prol de sua realização. Tornar o arcabouço fiscal consistente e sustentável é, sim, uma meta, mas só o primeiro passo de uma estratégia maior, que visa a retomada do grau de investimento até o final de 2026. Demonstre a sua típica ambição e seu pensamento grandioso, normalmente aplicados a indicadores sociais e a participação internacional do Brasil, também na esfera fiscal. Se quisermos e nos empenharmos na direção correta, podemos ir muito além do que os cálculos de melhorias marginais, incrementais e lineares das planilhas de Excel costumam sugerir. Não precisamos ir longe. Olhe a Argentina. Alguém diria que ele seria capaz de fazer tanto em tão pouco tempo?

Na Carta, com letra maiúscula para reforçar sua importância, anuncie a criação de seu DOGE. Convide Pérsio Arida e Henrique Meirelles para sua composição. Eles chegaram a aparecer ao seu lado na campanha. O senhor tem a narrativa. A competência de ambos é inquestionável, amplamente reconhecida. O dólar voltaria imediatamente a R$ 5,80 e o senhor ainda teria o discurso de combater os supersalários, atacando o andar de cima, entre outras coisas de ineficiência do Estado, claro. Convide Armínio Fraga para uma reunião, queira ouvi-lo abertamente. Além de colher boas ideias, o senhor realizará um ato de grande simbolismo histórico.

Presidente, há como arrumar o Brasil ainda no seu mandato e evitar uma grande crise. Mas talvez essa seja sua última chance. Se esperarmos bater no emprego e na inflação para, só então, agir, pode ser tarde demais.

Este é o melhor presente de Natal que o país poderia ter.

Desejo ao senhor e aos três leitores desta Carta: boas festas. Que todos possam aproveitar o momento para encontrar sentido, propósito, pertencimento e percepção de utilidade. A felicidade caminha por aí.

Na falsa esperança de que esta carta chegue ao senhor,

Um fraterno abraço,

Felipe.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.