Day One

Daniel na cova dos leões

“Os cisnes negros não são eventos improváveis de alto impacto apenas. Eles são aquelas coisas que nem sequer conseguimos vislumbrar em nossos mapas de risco ou distribuição. São os unknown unknowns de Donald Rumsfeld”

Por Felipe Miranda

31 jul 2023, 15:55 - atualizado em 31 jul 2023, 15:55

cisne negro

Daniel Kahneman tinha seu próprio teste de inteligência. Não era algo propriamente científico, mas a anedota funcionava bem. Era mais ou menos assim: ele estimava quanto tempo uma pessoa, ao conhecer seu amigo Amos Tversky, demorava para perceber que Tversky era o mais inteligente da roda. Quanto mais rápida a identificação, maior seria a inteligência do interlocutor.

Inspirado na brincadeira, batizei Daniel Goldberg de “Amos Tversky brasileiro”. Se você se interessa por investimentos e, mais do que isso, por filosofia de investimentos e finanças, entendo não haver nada mais útil neste começo de semana do que ouvir o podcast Market Makers com ele. 

Antes de prosseguir e, talvez mais importante, para evitar qualquer potencial desentendimento pessoal, um esclarecimento: o paralelo entre Tversky e Goldberg se restringe ao brilhantismo intelectual de ambos. Daniel é sempre a pessoa mais inteligente da mesa. Isso nada tem a ver com o campo de estudos, tampouco com a forma de pensar de ambos. Tversky é o sujeito das Finanças Comportamentais. Goldberg é (ou, ao menos, assim eu o interpreto) alguém do arcabouço ortodoxo de mercados ainda que, parcialmente, eficientes e das expectativas racionais. A distinção é importante e terá implicações no correr do texto. E, sim, para os mais afoitos vale explicitar: Daniel é um grande ganhador de dinheiro, de tal modo que tenho adotado para mim mesmo a seguinte heurística: se ele está no crédito, fuja do equity (ele é tão brilhante que vai construir estruturas para se apropriar do fluxo antes de você; isso é um elogio). 

Retomo.

Vamos do começo, iniciando pelos bastidores. Na semana passada, recebi um zap do Thiago Salomão: “o Daniel está aqui na recepção.” Fui ao seu encontro para cumprimentá-lo. Ao me aproximar, jogando a orelha de leproso (com todo o respeito aos leprosos, claro) poucos metros à frente, pude ouvir a conversa: “Thiago, o que o Taleb propõe não é uma reorientação dos modelos de finanças. O papo dele não é de investimentos. Não é pra ajustar o VaR ou coisa parecida. É pra jogar tudo isso fora, porque os fenômenos são inteiramente imprevisíveis e intratáveis. É uma abordagem de epistemologia, não de finanças.”

Butterflies in the stomach. Claro que aquilo soou como música para os meus ouvidos. Taleb é aquela coisa: todo mundo diz que leu. Metade das pessoas não leu. Daqueles que leram, poucos realmente entenderam a essência da coisa. “O que o Taleb propõe é que as caudas das distribuições são mais gordas. Então, precisamos ajustar nosso Black & Scholes.” Ora, não é isso! Todo mundo sempre soube que os retornos dos ativos não são gaussianos (lognormais). Ele não defende um ajuste no Black & Scholes; ele quer jogar o B&S no lixo. Ou, então, aquelas matérias ou relatórios de final de ano: “vejam os 10 cisnes negros possíveis para 2024”. Essa coisa é um paradoxo. Os cisnes negros não são eventos improváveis de alto impacto apenas. Eles são aquelas coisas que nem sequer conseguimos vislumbrar em nossos mapas de risco ou distribuição. São os unknown unknowns de Donald Rumsfeld. Ou seja, são coisas que, por definição, você não pode listar como riscos possíveis para o ano seguinte. Esses seriam os cisnes cinzas.

Conto essa conversa da coxia porque, pra mim, o maior mérito do Daniel é que, diferentemente de outros grandes gestores, ele também é um epistemólogo. De maneira muito distinta de outros profissionais de mercado, ele não se propõe a prever o futuro, tampouco a se colocar numa posição de superioridade intelectual, moral ou informacional diante do outro. 

Da forma com que eu o vejo (fique claro: essa é apenas a minha interpretação sobre ele), identifico alguém sempre preocupado com filosofia de finanças, metodologia de finanças e humildade intelectual. Isso desemboca em um framework completamente diferente daquele típico da Faria Lima ou do Leblon.

Do que estou falando exatamente? 

A maior parte dos investidores foi treinada a partir de uma determinada abordagem, que se baseia na ideia de que existe uma assimetria informacional grande no mercado. Ou seja, se você se dedicar muito, poderá acessar ou processar melhor a informação do que seu coleguinha. Assim, terá uma capacidade superior de calcular o tal valor intrínseco de uma determinada companhia (ou de um determinado ativo). Bastaria, portanto, compará-lo ao preço de tela e decidir se compra ou vende.

Não à toa, observamos discursos autoelogiosos de gestores se vangloriando de seu processo de análise, do quanto ele (e só ele!) foi capaz de fazer um mergulho profundo numa determinada empresa, sendo, portanto, detentor de uma sabedoria particular.

A verdade é que essa perspectiva funcionou muito bem até, sei lá, os anos 90 nos EUA. Mas aí veio a internet, o Google, os supercomputadores, os algoritmos e… todo mundo ficou sábio e inteligente. A cada dia, a assimetria de informação diminui. Eu não tenho a menor dúvida de que você, leitor, é genial. Mas a verdade é que os outros dois leitores desta newsletter são igualmente inteligentes e capazes. Todos nós fomos perdendo a vantagem informacional sobre a média, porque, basicamente, todo mundo sabe tudo (ou pode saber tudo). E mais: trabalhamos com modelos que requerem acessarmos um futuro, por definição, desconhecido, sendo esses mesmos modelos altamente sensíveis a pequenas mudanças de premissas sobre esse futuro. Se você ainda não percebeu, é uma fragilidade enorme.

O ponto de partida de Daniel Goldberg me parece outro (de novo, essa é a minha interpretação): sendo os mercados bastante eficientes, com boa capacidade de acessar e processar informação, tendo indivíduos muito racionais por aí, como eu posso bater o mercado? Seria possível?

A resposta é sim, basicamente se apropriando de riscos em que outros não estão dispostos a correr. O exemplo da seguradora é bastante bom. O mercado é eficiente e, ainda assim, a seguradora ganha dinheiro na média. O investidor sabe que o valor pago pelo seguro é superior à probabilidade de ficar doente vezes o custo associado à doença. No entanto, mesmo assim, é racional para ele contratar o seguro, porque quer evitar a catástrofe de parar na UTI e ir à falência. Como a seguradora faz isso em massa, topa esse risco, porque ele será diluído pelos milhares de segurados. 

Outro bom exemplo é aquele em que há deslocamentos momentâneos de ativos ou classes de ativos para uma nova categoria. Pense numa situação em que uma determinada empresa é considerada investment grade. Há um choque exógeno desfavorável que afeta a companhia. Ela passa a ser avaliada como junk (de baixa qualidade de crédito, grosso modo). Num primeiro momento, todos os investidores com mandato somente para títulos investment grade são obrigados a vender o ativo. Ao mesmo tempo, aqueles com mandato para investir em junk bonds ainda não tem modelo, nem cobertura para aquela companhia novata naquela categoria. Até que exista uma adaptação ao novo cenário pode existir uma oportunidade de investimento. Nessas fronteiras, existem pequenas brechas circunstanciais de ineficiência de mercado.

Daniel Goldberg passa por vários outros exemplos. A maior parte (para não dizer a íntegra) deles está acessível a investidores institucionais e a cotistas de fundos. Fiquei pensando no que, dentro do mesmo framework mental, poderia servir exclusivamente ao investidor pessoa física. Haveria momentos de disfuncionalidade no mercado em que ele poderia se aproveitar, inclusive em vantagem sobre o institucional?

Encontrei três possibilidades:

Imóveis: na média, o investimento em imóveis, tratado exclusivamente como tal, não oferece retornos extraordinários. Caio Mesquita dedicou sua última newsletter inteiramente a isso. Vale a leitura. No entanto, há situações específicas sobre as quais o investidor deve estar atento, que podem levar a retornos finais surpreendentes, resumidas em circunstâncias de aperto do vendedor, quando o desespero obriga a venda a preços atraentes. Há inclusive uma sigla em inglês para isso, chamada de 3D (debt, death and divorce). Se há uma dívida muito grande do vendedor, uma situação de falecimento ou algum divórcio rolando, isso pode deslocar a transação da racionalidade e do valor justo em favor do comprador.

Mercado secundário de renda fixa: com a sofisticação das plataformas de investimento e seus canais de distribuição, LCIs, LCAs, CDBs e afins costumam ser razoavelmente bem apreçados em suas operações primárias. Se o negócio sai a 120% do CDI, muito provavelmente é porque a emissão goza de rating correspondente a isso. Então, uma porção bastante pulverizada dessa emissão é comprada por pessoas físicas, muitas vezes em prazos mais longos (quanto maior o prazo, normalmente maior o ROA para o canal de distribuição, que, portanto, se vê incentivado a empurrar no cliente um título de duration longo, ainda que o horizonte temporal daquele investidor seja mais restrito). Como corolário, é comum vermos a necessidade (ou a mera vontade) de o investidor sair deste título no meio do caminho, ávido por liquidez. Aí aparecem oportunidades fantásticas no mercado secundário de renda fixa. Se você tiver a disciplina de entrar toda manhã na(s) sua(s) plataforma(s) de investimento favorita(s) e raspar as alternativas nesse mercado secundário, poderá ter um retorno acima da média, compensado mais do que devidamente pelo risco (ex.: vai comprar um título de 130% do CDI, que fora emitido a 118% do CDI, por conta de uma necessidade pontual do vendedor).

Small caps: a maior sofisticação e eficiência dos mercados ocorrem justamente diante da atuação dos profissionais e dos arbitradores. A pessoa física, em geral, dispõe de menor capacidade de acesso, processamento e armazenamento de informação. Portanto, onde não há atuação dos institucionais e reina a pessoa física, a chance para vantagens informacionais é maior. Se você for a um grande investidor profissional oferecer uma espetacular oportunidade de investimento numa microcap, ele pode até concordar com você, mas não vai conseguir investir naquilo — se um fundo de R$ 10 bilhões resolver investir 1% numa determinada small cap, isso vai representar R$ 100 milhões, o que pode corresponder a um percentual elevado do free float daquela companhia. Ou seja, não vale a pena. Então, nesses nichos de menor liquidez, oportunidades de subapreçamento podem acontecer com mais frequência e intensidade. É como se você não estivesse mais competindo na Fórmula 1 contra pilotos profissionais. Você está ali contra outros motoristas com habilidades semelhantes às suas. Poderá haver ineficiência dos mercados quando não há profissionais atuando. As chances aqui existem e são maiores, sobretudo quando os mercados estão menos líquidos e os fundos de ações e multimercados ainda estão sofrendo resgates. Qualquer semelhança com o momento atual não é mera coincidência.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.