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Day One

Erro de design na indústria de multimercados

Nesta edição, Felipe Miranda fala sobre o comportamento da indústria de multimercados a respeito de políticas monetárias.

Por Felipe Miranda

22 jul 2024, 13:16 - atualizado em 22 jul 2024, 14:21

Imagem: Shutterstock
Imagem: Shutterstock

Poucas coisas são tão tóxicas quanto a pessoa que nunca erra. “Eu ganho. Nós empatamos. Vocês perdem.” Serve para empresários, líderes de equipe e gestores de portfólio. A etimologia de “autoridade” se relaciona ao particípio “augere”, de aumentar, aprimorar ou fazer crescer (a equipe, claro) – mas quem faria isso na rua dos egos inflados? 

Na semana passada, ouvi uma longa explicação de um gestor de multimercados sobre o acerto dos brasileiros em 2023:

“A nossa indústria foi a grande vencedora daquele ano. Isso porque os brasileiros são calejados nessa história de inflação e conhecem muito bem a reação dos Bancos Centrais. Seria necessário subir bastante as taxas de juro. E, portanto, pudemos apostar na abertura das curvas de juro. O gringo estava tão desacostumado com inflação que nem lembrava como seria isso. Tínhamos uma vantagem competitiva clara.”

No breve intervalo da palestra do meu interlocutor, que apenas fingia tratar aquela defecação de sapiência como um diálogo, aproveitei sua pausa para tomar fôlego e disparei: 

“Mas o que aconteceu para esses mesmos conhecedores de política monetária restritiva perderem tanto dinheiro no começo de 2024?”

“Ai, daí foi azar. Acontece com todo mundo.”

De fato, azar ou sorte desempenham papel determinante, inclusive no longo prazo, para separar vencedores de ganhadores no mercado financeiro (e em quase todas as outras áreas da vida). Se Trump não tivesse virado o rosto por poucos graus… Se aquelas duas bolas na trave do Bahia ao final do jogo tivessem entrado… Se Hitler fosse mulher… E se você ainda não está convencido do argumento, lembre-se de que, se não fosse a mutação genética (um fenômeno 100% aleatório), ainda seríamos um ser unicelular sem complexidade e inteligência. 

Não é apenas que a aleatoriedade explica parte dos resultados, mas que tem a maior responsabilidade pelos desempenhos. André Ramalho, zagueiro do Corinthians, tentou até identificar alguma força oculta para explicar as duas bolas no poste, algo como: “Esse tipo de coisa não é sorte. É resultado de muito trabalho.” Ainda estou tentando entender como duas bolas na trave, cuja trajetória marginalmente diferente poderia ter resultado em gols, não são resultados da sorte.

Olha, nada contra a sorte. Ao contrário, prefiro a companhia da deusa Fortuna à de um inteligente azarado. “Sem sorte, você nem atravessa a rua.” Mas não pode ser competência no acerto e azar no erro. 

O ponto principal aqui apontado para o ceticismo com a indústria se assenta em sua falta de rigor metodológico. Quando a cota sobe, é acerto do gestor, sem espaço para sorte. Quando cai, aí é só azar mesmo, nada de erro ou incompetência. 

Fique claro: erros e acertos fazem parte do processo. Se você for um gestor macro de excelência, vai acertar 55% das vezes. Também não se trata de advocacia em causa própria. Para que não reste dúvida a esse respeito: erro todos os dias, várias e várias vezes, de maneira feia e intensa.

Mas faltam rigor epistemológico e honestidade intelectual com os resultados e as diligências. Essa é minha maior preocupação com o futuro da indústria. Diferentemente de interpretações mais usuais de que se trata apenas de uma conjuntura e de um ciclo ruim desse nicho, receio que, se não houver mudança, essa possa ser uma ruptura mais estrutural. 

Não confunda a afirmação com uma crítica à inteligência, à capacidade de análise ou ao comprometimento dos gestores e de seus times. No geral, é gente extremamente competente e esperta, dedicada, formada nas melhores universidades do mundo, com muita experiência no que faz e potência de raciocínio. Mas é dessa fortaleza que também emerge uma enorme dificuldade: se é todo mundo inteligente e dedicado, como se diferenciar? Como ter um edge em relação às outras 700 gestoras, que também só tem gente brilhante, genial e dedicada?

Há alguns anos, até poderia haver vantagem informacional, seja no acesso à informação ou em seu tratamento e processamento. Hoje, não há. O economista PhD por Stanford da gestora X sabe tanto quanto o PhD por Princeton da empresa Y. O modelo do Banco Central é conhecido de todo mundo, mas estão todos tentando acertar qual o nível da Selic na próxima reunião do Copom. Qual a chance de isso dar certo de maneira sistemática?

Em vez de assumirmos nossa incapacidade de penetrar o impermeável, andamos para trás. Sem a vantagem informacional canônica, passamos a valorizar reuniões fechadas, em que se comenta uma coisa ou outra de forma desavisada e, falsamente, despretensiosa. A verdadeira análise perde importância frente ao Corporate access. Todos os participantes de mercado são doadores de alpha para os participantes da versão dos “embargos auriculares” aplicados ao mercado financeiro. Institucionalizamos agora o insider trading, disfarçado pelo eufemismo no “quente e frio” com RIs, CFOs e CEOs.

Outra saída típica: se ficamos muito grandes para o mercado local e não há mais tanto edge informacional, passemos a operar lá fora. Ótima ideia para maximizar os erros! 

Se estamos cometendo equívocos no nosso próprio quintal, por que passaremos a acertar no sudeste asiático? Se a concorrência aqui é grande, não seria ainda pior no exterior? Na Sulamericana, o Corinthians pode até ter alguma chance mínima, mas seria uma vergonha jogar a Champions League. Será que não saímos assim de nosso círculo de competência? Ou, ainda pior, estamos fechando os olhos para um grande style drift de boa parte da indústria?

Na história da Empiricus, trabalhei como um louco. Ainda trabalho arduamente.

Pudemos reunir aqui pessoas de muito talento, inteligentes e dedicadas. Tivemos também alguns raros momentos de iluminação. Mas, sempre que perguntado, atribuo à sorte a maior responsabilidade pelo nosso crescimento. Se uma coisa ou outra tivessem sido marginalmente diferentes, essas linhas nem existiriam. Teríamos quebrado ou desistido. 

Estou certo também de que, se investigássemos as trajetórias empresariais por aí, identificaríamos dinâmica semelhante, apesar da insistência de alguns empresários de autoatribuir-se uma coleção de superpoderes ou, ainda pior, invocarem uma intervenção divina em seu sucesso – quando vejo isso, sempre me pergunto: caramba, mas, entre bilhões de pessoas no mundo, por que Deus parou suas atividades para selecionar esse empreendedor para ser sucedido em detrimento do outro? Aquela história do André Agassi quando ouviu Michael Chang dizendo que precisava agradecer a Deus pela sua vitória; ah, muito legal, então Deus preferiu Chang a Agassi! Quanta generosidade e justiça!

Será que os gestores também se dão conta de que muito de sua rentabilidade veio apenas de forças aleatórias? Será que uma grande habilidade não derivava apenas de arbitragem entre passivo e ativo?

A coisa está construída de maneira torta. Como o gestor precisa gerar alpha, ele é pago para discordar do mercado. Se você discorda do mercado, vai incorrer em volatilidade, claro. Ocorre que, se tiver muita volatilidade, seu telefone vai tocar, com o alocador exigindo stopar aquela posição ou até mesmo já pedindo resgate. O cliente não tolera volatilidade. Então, o gestor precisa discordar do mercado, mas só um pouquinho. Não pode discordar muito. Como resultado, quando o gestor acerta, dá CDI+2%. Quando erra, rende negativo. E, no final, todo mundo reclama disso. Ora, mas foi feito pra ser assim. É a arquitetura do processo.

Se você constrói algo para dar errado, olha, boas chances de dar errado.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.