Day One

Felipe Miranda: o Real vai morrer aos 30?

Sócio-fundador e analista-chefe da Empiricus comenta decisão do Copom e perspectivas dos 30 anos do Real.

Por Felipe Miranda

13 maio 2024, 13:45 - atualizado em 13 maio 2024, 13:45

“Nós amamos nossos filhos?”

“Vamos destruir a nossa moeda justamente quando deveríamos celebrar seus 30 anos de vida?”

“Você reparou a sequência de referências ocultistas no show da Madonna?”

Eu também gostaria de começar a segunda-feira de maneira mais leve. Receber uma indagação assim imediatamente depois do Dia das Mães parece uma provocação pesada demais, mas a verdade é que essa pergunta tem me perturbado desde a semana passada. Ela foi levantada por Scott Galloway em sua participação recente no Ted Talks.

Claro que todos nós, ao menos a princípio, amamos nossos filhos. Soa como uma tautologia. Assim, não seria razoável deixar-lhes uma herança melhor? Galloway mostra como as crianças de hoje são a primeira geração a realizar menos coisas do que seus pais e caminham para receber um governo e uma sociedade muito mais endividada. É isso mesmo que queremos deixar para nossos filhos?

A palestra se chama “How the US is Destroying Young People’s Future” (como os EUA estão destruindo o futuro dos seus jovens) e está disponível no YouTube. Postei o link no meu Instagram na semana passada tentando estimular visualizações. Algo curioso aconteceu, sinal dos tempos. Cerca de dois minutos depois (o vídeo tem 18 minutos) surgiram comentários como: “Se não acabarmos com esta cultura woke imediatamente, os EUA estarão condenados a perder a liderança global.”

Olha, pode até ser. Eu mesmo acho esse papo woke chato para caramba. Mesmo pertencendo a outro espectro ideológico, concordo com Vladimir Safatle e entendo que a esquerda se afastou de suas preocupações originais de maior igualdade de renda e patrimônio e foco em participação direta, para perder-se numa “constelação de progressismos.” Mas as sugestões de Scott Galloway para resolver os problemas identificados na economia norte-americana não têm nada a ver com suprimir a cultura woke.

Entre as minhas preocupações pessoais, está um, ao menos aparente, afastamento adicional da sociedade civil da Academia — não que essas coisas convivessem em harmonia e proximidade no Brasil, mas elas parecem ter se distanciado ainda mais. Não se faz ciência e, por conseguinte, proposição de política econômica dentro do que deveria ser a fronteira do conhecimento com discurso politizado. Também não estou dizendo que a ciência detém um saber divino ou perfeito, capaz de solucionar todos os problemas do mundo.

Mas ela é o melhor que temos disponível, funcionando a partir de uma série de protocolos muito bem definidos e rituais institucionalizados. Não basta você achar algo bom ou ruim. Formula-se uma hipótese a partir da sua conjectura. Submete-se essa conjectura ao teste empírico. Produzem-se vários novos testes, artigos e métodos para buscar validar aquilo. Caso se encontre significância estatística no teste, a conjectura não foi rejeitada e o jogo continua.

A validade empírica, de um lado e de outro, deu lugar ao apriorismo das posições ideológicas. Se tal medida se alinha ao estereótipo de minha corrente de pensamento, está aceita mesmo sem precisar passar pelo teste empírico. Se você é de esquerda, gostou do show da Madonna. Se é de direita, identificou uma série de referências ocultistas no palco. Aleister Crowley, que também não deve ter visto o show, saiu falando que adorou.

A politização teria chegado ao Copom. Com os quatro diretores nomeados pelo presidente Lula votando de maneira distinta aos demais cinco membros do colegiado do BC, rapidamente condenamos à morte a independência do Banco Central. Na prática, ressuscitaríamos a Era Pombini e teríamos o poder Executivo como presidente do Banco Central brasileiro.

Será mesmo o caso?

Antes, algumas ponderações. A decisão do Copom na semana passada foi inequivocamente ruim. Quando você tem um colegiado dividido entre os “novos” e os “velhos”, alimentam-se os piores medos. O Copom deveria saber disso.

Não quer dizer que autoridades monetárias sempre precisem de consensos. O BoE mesmo acabou de encontrar um dissenso, de 7 a 2. O Fed deve também viver seus momentos a partir do segundo semestre. Mas a natureza da divisão entre os “lulistas” e os “bolsonaristas” deu margem à interpretação de que o Copom agora estaria enfrentando a mesma polarização da sociedade. 

Teríamos uma gestão nomeada com o propósito bem definido de jogar os juros para baixo na marra a partir de 2025, alinhado ao suposto modelo desenvolvimentista defendido historicamente por economistas ligados ao PT. 

Nada poderia ser pior neste momento. O Brasil nunca conseguiu resolver seu problema fiscal adequadamente. É uma questão estrutural. Mas estava circunstancialmente pior com os ferimentos provocados no arcabouço recente — liberação de crédito extraordinário de R$ 15,7 bilhões e revisão de metas para 2025 e 2026. Para combater nossa fragilidade fiscal, precisávamos de um monetário muito apertado. Tínhamos uma grande âncora funcionando por duas. Agora, conseguimos levantar questionamentos também sobre a âncora monetária. Os juros seriam mais baixos, a inflação e o dólar subiriam. Perderíamos a moeda, justamente quando o real completa 30 anos de idade.

Criamos um problema que não existia. Na semana passada, honramos velhas máximas como: “O Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade”; “atravessamos a rua para escorregar na casca de banana que estava na outra calçada”; “não se preocupe: este país não corre o menor risco de dar certo”; “vamos mais uma vez capotar na reta.”

Os mercados emergentes sofreram o ano inteiro com a postergação das expectativas para corte do juro básico nos EUA. Quando o Employment Report trouxe a esperada desaceleração e sugeriu afrouxamento monetário em setembro, seguido de novo corte do juro em dezembro, ameaçamos um retrocesso enorme ligado à independência do Banco Central.

Não à toa, a performance de nossos mercados foi muito pior do que a apresentada por pares e referências importantes reduziram suas posições em Brasil.

Estaria mesmo tudo perdido?

É cedo para dizer. “Previsões são sempre difíceis, especialmente sobre o futuro.” Na semana que vem, poderemos escrever com o benefício da retrospectiva, quando ficará óbvio para todo mundo o que aconteceria — sempre fica óbvio a posteriori.

Por ora, estamos diante de uma encruzilhada, em que o Copom ainda tem a chance de emitir sinais de ortodoxia e coesão. A ata da próxima terça-feira é fundamental para isso. 

Existiam, de fato, elementos técnicos para se justificar um corte de 50 pontos. A sinalização formal do próprio Copom na última ata apontava justamente nessa direção e, como sabemos, credibilidade conta para a política monetária. Você deve fazer o que sinalizou que faria. Roberto Campos mudou de discurso no FMI. Parece que não combinou com o time todo. O erro talvez tenha sido fixar o forward guidance lá atrás. Primeiro, nos amarramos a 50; depois, ele se amarrou ao 25 e não teve tempo de voltar atrás.

Desde quando o próprio presidente do Banco Central alertou para riscos crescentes diante da maior incerteza internacional, a tal incerteza diminuiu. Jerome Powell teceu comentários mais brandos e descartou alta de juro; o Relatório de Emprego criou menos vagas de trabalho e os pedidos de auxílio-desemprego subiram bastante. O dólar voltou bem e a inflação brasileira continuou dando sinais favoráveis, com melhor composição do segmento de serviços.

Cumpre também dizer que há diretores do Banco Central que votaram a favor de um corte de 50 pontos sem nenhuma vinculação política conhecida. Paulo Picchetti goza de profundo respeito da academia e sempre foi um estudioso bastante ortodoxo da inflação brasileira.

Ou seja, a ata amanhã é um instrumento capaz de corrigir o excesso de pessimismo. Não digo necessariamente de apagar o ocorrido. A História não se repete. A mácula existe, indelével. Mas o estrago pode ser bem menor caso as justificativas sejam técnicas (sim, elas existem!) e demonstrem um Copom unido em prol da perseguição obstinada do centro da meta de inflação de 2025. Precisamos de uma explicação detalhada sobre o voto daqueles que preferiam uma flexibilização monetária melhor. 

Também seria um erro político um tanto grande retirarmos o pilar do rigor monetário. O dólar dispararia, a inflação também. Chegaríamos em 2026 provavelmente com uma crise pronunciada. O espectro da “Frente Ampla” veria o centro migrando em definitivo para a direita. Lula perderia a eleição e, provavelmente, encerraria seu ciclo político sem ter conseguido criar um sucessor à altura na esquerda.

Em paralelo, o Brasil tem um tecido empresarial e institucional denso e profundo. A imprensa tece duras críticas à decisão do Copom e explicita os riscos em curso — os jornais de domingo estavam tomados por essa preocupação. O próprio Banco Central tem seus ritos e modelos devidamente documentados e institucionalizados, com técnicos de carreira de altíssima competência. Claro que o poder de destruição do Leviatã é grande, mas a resistência também não é desprezível.

Tudo considerado, vivemos um daqueles momentos típicos da capitulação, o famoso momento ZEM (Zera Esta M…) — os memes da semana passada com as “estopadas” de ícones locais são uma metonímia do fenômeno geral. Depois do pico do pessimismo, costuma vir a reversão à média, em especial se o cenário externo permitir.

Feitos de gente, os mercados têm seu narcisismo e adoram atribuir a fatores locais as dinâmicas de preço, mas a verdade é que estamos muito dependentes do ambiente internacional. O Brasil tem enorme sensibilidade ao comportamento das taxas de juro nos EUA.

Sofremos bastante quando elas subiram e, de maneira simétrica, deveríamos ser um dos maiores beneficiados se for confirmado o ciclo de corte por lá. O CPI na quarta-feira é muitíssimo relevante para determinar a evolução doméstica nas próximas semanas. A perspectiva de flexibilização monetária caso a inflação nos EUA se mostre mais bem comportada poderia, inclusive, trazer maior complacência com os riscos fiscais e monetários no Brasil.

O caminho mais provável ainda parece ser da mediocridade, da complacência e da antropofagia brasileira, aquela alternância entre a coisa chata e sonolenta do banquinho e violão do João Gilberto seguida do tropicalismo idolatrado pela esquerda mas que bebe dos metais elétricos do rock americano. 

Em linguagem de economista, o Banco Central mudaria um pouco suas preferências e sua função de reação, dando mais peso a desvios do produto do que a divergências da inflação à meta. Seríamos, sim, um pouco mais “dovish”, mas ainda obedecendo a uma regra de Taylor defensável, com parâmetros recalibrados.

Nem tudo está perdido. E como falamos muito do monetário, vale a pena algumas considerações sobre o fiscal. Mesmo dentro do espectro ideológico de esquerda, haveria muito a se fazer em prol de melhor equilíbrio das contas públicas. 

Voltando ao começo, o próprio Scott Galloway oferece alternativas. Precisamos de uma nova e grande reforma da Previdência, não somente com uma mudança de valores e parâmetros, mas de conceito. O Estado deve cuidar dos mais necessitados, não necessariamente dos mais velhos. Hoje, em nível global, octagenário de bilhão está recebendo um cheque do governo. Não faz sentido! Aqueles com patrimônio e renda suficientes para gozar de uma aposentadoria tranquila não precisam da ajuda estatal.

Além disso, deveríamos, como já defendeu até o ministro Haddad, desvincular as aposentadorias do reajuste do salário mínimo. Quem participa do mercado de trabalho deve incorporar, além da inflação, os ganhos de produtividade. Quem está fora dele, não. Por definição, ele não tem ganho de produtividade e, portanto, deve ter “apenas” preservado seu poder de compra, com reajustes dados pela inflação somente.

Também poderíamos caminhar na direção de uma ampla e profunda reforma administrativa, sob o pretexto de coibir supersalários e privilégios de uma camada rica que se apropria de benefícios do Estado e de estabilidade muito além do razoável.

Há um espaço arrecadatório enorme caso sejam liberados cassinos (que inclusive poderiam ser escopo de política de desenvolvimento regional no Norte e Nordeste) e uso de maconha. O Brasil é aquela aberração em que você pode jogar na Mega-Sena, na loteria esportiva e em mil apostas esportivas (sem falar no semi-legalizado e contraventor jogo do bicho), mas cassino não pode.

Sobre a maconha, além dos benefícios medicinais e das melhorias de saúde pública advindas do canabidiol, vale lembrar que o uso recreativo está liberado até na Flórida, o sonho de moradia da elite reaça brasileira. A guerra às drogas alimenta a violência e atrapalha a gestão de saúde pública, sem qualquer arrecadação em troca. A legalização daria maior controle, reduziria níveis de violência e abriria espaço para boa arrecadação, com as típicas alíquotas altas do imposto do pecado.

O modelo educacional poderia ser revisto de modo a reduzir a pressão financeira sobre as universidades públicas federais e estaduais. No Brasil, rico estuda em universidade pública sem pagar, porque fez as melhores escolas e larga bem na frente, enquanto o pobre é empurrado para a escola particular, muitas vezes de pior qualidade e caríssima. É um instrumento concentrador de renda e anti-mobilidade social. Do mesmo modo, podemos incentivar investimentos privados para bolsas no ensino de base. Da mesma maneira que surgiu o espetacular Inteli, poderiam ser criados outros institutos para o ensino básico.

Devemos liderar a discussão em prol da criação do mercado global de carbono e fomentar seu desenvolvimento pragmático a partir da COP30. Fazer esse debate dentro da Amazônia é uma oportunidade histórica, que poderia colocar o Brasil na fronteira do desenvolvimento da economia verde, com grandes flancos de crescimento e um polo tecnológico segmentado na região.

Ao mesmo tempo, precisamos liberar a exploração de petróleo em toda a margem Equatorial e reverter a renda para os estados menos desenvolvidos brasileiros — sim, essas coisas podem coexistir. A transição para uma economia verde deve obedecer a uma caminhada de respeito à matriz exigência, pois a alternativa imporia enormes custos sociais.

E, se avançar a discussão para quebrar os monopólios das Big techs no mundo como propõe Scott Galloway, seria inevitável o mesmo desfecho chegar ao Brasil. Enquanto isso, as alíquotas de imposto sobre as redes sociais, que por definição gozam de externalidade de rede e resultam em monopólios na prática, poderiam também ser maiores.

Parte do pessimismo com o Brasil é merecido. Outra parte é resultado da velha confusão entre ausência de evidência e evidência de ausência. Não é porque não vemos a saída da crise que ela não exista. Ainda acredito que nós amamos nossos filhos.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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