Um bom mercado é igual à água em temperatura ambiente: líquido, transparente e pouco volátil. Nos últimos dias, contudo, o mercado comportou-se de forma oposta, especialmente no que toca à volatilidade, com um ativo tradicional roubando o protagonismo que tem sido dado à alta dos criptoativos: a companhia norte-americana GameStop viu suas ações se valorizarem vertiginosamente em um curtíssimo intervalo de tempo — mais de 20 vezes ao longo do último mês.
A GameStop é uma rede de lojas de consoles e jogos de videogame que vem sofrendo prejuízos em razão da migração do movimento de consumo para as lojas virtuais e plataformas de streaming. Nesse cenário, alguns fundos de investimento realizaram uma estratégia conhecida como “short selling”, por meio da qual realizaram vendas a descoberto de ações de emissão da GameStop, apostando na desvalorização do ativo.
Ocorre que um grupo de investidores resolveu começar uma “brincadeira” em uma rede social, incentivando publicamente a compra de ações da GameStop. Sem qualquer fundamento econômico para a valorização do ativo, o movimento foi motivado pela vontade de inverter a lógica do mercado e atacar a estratégia utilizada pelos fundos de investimento.
A “brincadeira” ganhou força, provocando a valorização abrupta do ativo. Um efeito manada provocou enormes prejuízos sofridos pelos fundos de investimento e um elevado número de negócios e, em meio à euforia, um dos maiores acionistas da Gamestop se desfez integralmente de sua posição após o preço do ativo explodir.
A ideia parece ter chegado ao Brasil, tendo em vista a notícia de canais reservados, nos quais pessoas estariam combinando uma compra maciça de ações do IRB Brasil, que perderam bastante valor no passado recente. Qual é o limite entre a atuação legítima de um grupo de investidores e a prática de um ilícito no mercado de capitais?
As pessoas adoram boas histórias e têm medo de ficar de fora de uma festa. A sensação é antiga, mas a recente expressão “fear of missing out” tornou-se popular em virtude das frustrações decorrentes do voyeurismo da felicidade alheia nas redes sociais. Esse é um campo fértil para as mais diversas irregularidades, dentre as quais a manipulação de mercado, quando há “utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda”.
O caso GameStop — assim como inúmeros outros no passado, desde a lendária bolha das Tulipas, há alguns séculos, até escândalos brasileiros como Boi Gordo, Avestruz Master ou a “Bolha do Alicate” — desafia o pressuposto da racionalidade dos investidores. O movimento dos preços da GameStop é indiscutivelmente atípico, inexistindo fundamentos econômicos que justifiquem a sua valorização. Mas estariam presentes os elementos caracterizadores de manipulação de mercado? Poder-se-ia perguntar, não é apenas um grupo de investidores em um site de mídia social?
As mensagens trocadas na página “wallstreetbets” da rede social Reddit podem ser interpretadas como um processo ou artifício destinado a elevar o preço das ações de emissão da GameStop. Ademais, tais mensagens justamente incentivavam terceiros a adquirir e manter esses ativos, atraindo cada vez mais investidores e alimentando a alta. A partir daí, verificou-se o comportamento de enxame dos investidores e o efeito manada subsequente. Era e permanece evidente que o propósito dos investidores é puxar o papel usando a rede social para inflar artificialmente uma cotação, incitando sua compra.
Em suma, o caso GameStop não é uma simples “brincadeira”. E, se o caso IRB seguir os mesmos passos, também não será. Vale lembrar que, além de ilícita no mercado de capitais, a manipulação de mercado também configura crime. Deve-se, portanto, olhar sempre se há um comportamento real orquestrado com o propósito de aumentar ou diminuir o preço de uma ação com o objetivo de induzir outros a comprar ou vender aquele título.