A zaga estava desarrumada. Por que atacar com tantos homens e deixar a defesa desprotegida faltando quatro minutos para o fim da prorrogação?
Àquela altura, você fura a bola, joga uma outra redonda no campo, ao melhor estilo Felipão, cai fingindo dor no posterior da coxa, faz duzentas faltas no meio campo. A 5 minutos do fim, não pode ter mais jogo. Faltou aquela catimba argentina, sobrou ingenuidade.
Também poderíamos apontar erros mais estruturais, além do fatídico lance final. O primeiro tempo foi muito ruim. Modric, incansável e tecnicamente perfeito, fez um “box to box” de difícil marcação – se Casemiro o acompanhasse até a área adversária, deixaria desprotegida a defesa; se não o fizesse, permitiria ao articulador pensar e armar o jogo.
Pouco comentado, o esquema tático pareceu confuso. Tite, de quem sou fã incondicional como bom corintiano, deu uma de professor Pardal. Inventou o lateral Danilo saindo da esquerda para o meio, como se fosse armar o time como elemento surpresa. Do outro lado, o competente Militão fez ótima partida defensiva, mas, pelas características pessoais, naturalmente pouco fez em termos ofensivos. Os dois pontas ficaram isolados sem a passagem por trás dos laterais. Não me lembro de uma jogada de linha de fundo sendo cruzada para o centroavante.
E como muito bem lembrou o gênio Tostão em sua coluna na Folha, faltou-nos um Modric. Neymar é craque e gênio, mas não tem por natureza a articulação. É decisivo e vertical; não pensa e distribui o jogo como Modric. Paquetá também não. Pensamos demais nos pontas, esquecemos dos meias.
Poderíamos elencar vários outros erros da seleção brasileira. No final do dia, porém, sejamos justos: a eliminação se deu por conta de um personagem fundamental do futebol, sobretudo em Copas do Mundo, cujas definições acontecem em apenas um jogo. Falamos do Imponderável de Almeida.
O goleiro adversário pegou até Covid no segundo tempo. A Croácia chutou uma única bola no gol. Alisson estava pelado lá o jogo todo e ninguém sequer reparou. A bola não ia lá. O atacante chuta a bola, que iria na mão do goleiro. Ela desvia caprichosamente em Marquinhos e foge do alcance do arqueiro. Nos pênaltis, o mesmo Marquinhos bate. Goleiro de um lado, bola do outro. A bola bate no pé da trave, em sua parte de dentro e volta na diagonal. Brasil eliminado.
O mesmo Marquinhos, que fez uma Copa perfeita. Jogou até de lateral esquerdo (e muito bem, por sinal). Travou todas, saiu jogando, lançou, deu passe para Thiago Silva, que serviu Richarlison para gol em jogo anterior, numa “tabela de zagueiros”. Ao final, fica marcado como “o cara que desviou a bola para tomarmos um gol e errou um penalty”.
Curioso como lances particulares, com efeito decisivo nas partidas, marcam a trajetória de esportistas. O fenômeno foi muito bem descrito no filme Moneyball, que narra a trajetória de um profissional que tenta filtrar esses vieses e introduzir uma abordagem científica e estatística na contratação e no treinamento dos jogadores. Não é porque o camarada fez o gol na final da Copa que ele é um craque. Basílio é celebrado até hoje pela decisão de 77, mas, a julgar apenas pela competência individual, merecia tanta fama? Baggio era um cracaço, mas levou tempo para ser perdoado por aquele tiro de meta batido contra o Brasil.
O tal “efeito Moneyball” é uma manifestação particular de um viés mais geral, chamado “Halo Effect”, uma espécie de transbordo de uma característica ou de um acontecimento local para algo plural. Se o sujeito é bonito e carismático, logo conclui-se pela sua inteligência e competência, por exemplo. Se perdeu um pênalti, é um péssimo jogador.
Vale para as mais variadas camadas da vida. No livro “Halo Effect: and the Eight Other Business Delusions that Deceive Managers”, Phil Rosenzweig traz o assunto para a perspectiva empresarial (e basicamente destrói as conclusões do admirado Jim Collins).
Talvez a mais importante manifestação do “Halo Effect” esteja em torno da figura de Fernando Haddad. “Ele é um político de esquerda, com alguma formação em Economia; logo, vai destruir a responsabilidade fiscal.”
Pode ser? Bom, claro que pode. Mas será que já podemos pular para essa conclusão? Não seria um tanto prematuro?
É verdade que os primeiros sinais do governo eleito não são muito alvissareiros sob a perspectiva fiscal. Depois de uma primeira semana fabulosa para os mercados depois da eleição, em que o capital internacional se preparava para migrar ao Brasil e Lula era recebido com festa na COP-27, o presidente eleito arriscou atirar no próprio pé ou capotar na reta. Ao colocar responsabilidade fiscal como antagônica à social, flertou com juros de 15% e câmbio de R$ 6, com consequências nefastas para o pobre. O pedido de “paciência” caso o dólar suba e a bolsa caia a partir de suas falas também não ajudou. A PEC da Transição seria tolerada com R$ 100 bilhões fora do teto, mas estamos saindo com praticamente o dobro disso.
Sinais preocupantes, sem dúvida. Mas há ponderações a serem feitas e conclusões sobre um governo que ainda sequer começou parecem um tanto superficiais.
Primeiramente, o formalismo: a autorização para gastos de até R$ 200 bilhões não significa necessariamente o gasto de R$ 200 bilhões. O Congresso fica mais à direita e ideológico em 2023, o que poderia significar mais dificuldade para negociações à frente. Do ponto de vista político, faz sentido sair com mais graus de liberdade.
Depois, Lula ainda não governa. A esta altura, Lula faz política. É sempre difícil discernir sobre o que é retórica e o que é material em suas falas, cuja intenção final obedece a uma lógica política. Nessa mesma lógica política, Lula sabe que a inflação pega na veia seu eleitorado e pode reviver Bolsonaro em 2026 – Tasso fala isso ao Valor hoje. Sem a economia, nada feito.
Haddad, por sua vez, é um político aberto ao diálogo, inteligente e sempre respeitoso com as Ciências Econômicas – o próprio vídeo viral em que ele brinca não saber muito de economia é uma espécie de deferência ao debatedor, um dos maiores economistas do país. Haddad foi responsável fiscalmente quando governou a cidade de São Paulo, nomeando Marcos Cruz (ex-Mckinsey) como secretário de Finanças e inclusive barrando algumas demandas popularescas. Conseguiu boas avaliações das agências de rating para o município. Na equipe de transição, faz dobradinha com Alckmin, de quem já era próximo – o que também o coloca próximo de Pérsio Arida, ainda que como conselheiro informal apenas.
Agora, aguardamos com atenção a nomeação dos secretários de Haddad. Isso pode ser muito importante para entendermos os rumos da política econômica e se há chances de repetirmos algo semelhante à era Palocci, quando também não tínhamos técnico no ministério da Fazenda, mas um político de confiança do presidente, capaz de ouvir os brilhantes Marcos Lisboa, Murilo Portugal, Joaquim Levy, Daniel Goldberg.
Em declarações recentes, Haddad já afirmou explicitamente a disposição para ouvir técnicos do Tesouro e outros economistas ortodoxos. Ele tem chamado atenção para a necessidade de um novo arcabouço fiscal e da reforma tributária.
Se tivermos nomeações como Marco Bonomo (Insper), Carlos Hamilton (ex-BC), Felipe Salto, Bernard Appy e Marcos Cruz, as coisas podem se encaminhar mais favoravelmente do que as cotações sugerem hoje. Ao mesmo tempo, precisa ser evitada a tentação de querer agradar a todas as matizes, repetindo o erro da equipe de transição e acomodando também nomes heterodoxos nas secretarias ou no Planejamento. Se formos por esse caminho, as chances de capotar na reta serão maiores. Teremos mais uma vez honrado a máxima do país que não perde uma oportunidade de perder oportunidades. O mundo carece de boas alternativas e está louco para abraçar o Brasil. Não podemos atirar no próprio pé.