Day One

Nem me queixo, nem me vejo satisfeito

“Para além das metamorfoses pelas quais passamos todos os dias, e dos processos […]”.

Por Rodolfo Amstalden

06 out 2022, 11:15 - atualizado em 06 out 2022, 11:15

Insatisfeito
Fonte: Free Pik
Para além das metamorfoses pelas quais passamos todos os dias, e dos processos em looping infinito, eu aprendi a gostar também dos textos laterais de Franz Kafka.

Felipe foi quem primeiro me chamou atenção para o pedaço menos conhecido de sua obra, por meio da “Carta ao Pai” – uma carta que Franz escreveu a Hermann Kafka, mas que nunca chegou às mãos dele.

Evito resumir a ideia da Carta, pois realmente entendo que ela deva ser lida na íntegra, por todos os filhos e por todos os pais. 
Aos nossos interesses presentes, basta dizer que ela endereça, entre outras coisas, um aspecto de suma importância ao investimento em ativos de risco: a atribuição de culpas e de responsabilidades. 

Ou, com certo agravo, a impossibilidade – seja ela científica ou artística – de se atribuir culpas e responsabilidades com exatidão.

Teria o Ibovespa ultrapassado os 115 mil pontos devido ao 2º turno acirrado nas eleições brasileiras, ao repique do minério/petróleo ou ao bear market rally nos EUA?

Um pouquinho de cada ingrediente, desses e de outros ingredientes inefáveis, que é o mesmo que dizer: ninguém sabe nada. Entre o Datarua e o Datafolha, os espaços amostrais não conversam com as populações que ambicionam representar.

Eu e Felipe recorremos à Carta ao Pai quando escrevemos o livro Contra o Financismo – hoje disponível apenas em sebos. Verba volant, scripta manent. O pouco que tínhamos a dizer sobre isso está dito.

Logo, gostaria de partir para outro texto lateral de Kafka, chamado “Um Relatório para uma Academia”, do qual tomei conhecimento recentemente. 

Nessa breve narrativa filosófica, um macaco descreve como foi capturado em uma expedição de caça, transportado para a Europa e levado a um circo, até conseguir imitar perfeitamente o comportamento humano e tornar-se um ex-macaco.

Abriu mão de sua antiga vida de primata em troca do domínio da linguagem humana e da aceitação na sociedade europeia.

Mas não se tratou exatamente de uma escolha voluntária, muito menos de um processo civilizatório de libertação.

O ex-macaco de Kafka se viu obrigado a escolher entre duas prisões – se não quisesse ficar enclausurado numa jaula de circo, teria que se render aos limites da experiência humana.  

Complacente, aprendeu a moderna teoria das finanças, compreendeu as equações de média-variância, CAPM e Black & Scholes, e com isso recebeu seu diploma de financista, magna cum laude.

No entanto, seu espírito animal desvaneceu. A intuição de identificar regiões com low hanging bananas se foi, junto com o suingue da floresta.

Ou, nas palavras do próprio ex-macaco: 

“Se abranjo como olhar minha evolução e sua meta até agora, nem me queixo nem me vejo satisfeito. As mãos nos bolsos das calças, a garrafa de vinho em cima da mesa, estou metade deitado, metade sentado na cadeira de balanço, e olho pela janela”.

Sobre o autor

Rodolfo Amstalden

Sócio-fundador da Empiricus, é bacharel em Economia pela FEA-USP, em Jornalismo pela Cásper Líbero e mestre em Finanças pela FGV-EESP. É autor da newsletter Viva de Renda.