Day One

O Brasil vai virar a Argentina?

Sabe como é: “há contradições explicáveis”. Versão machadiana para “eu posso me explicar”… quem nunca? Em conversas raras que acontecem sempre, escuto de grandes investidores: “nós não olhamos para o macro. Somos buffettianos e, portanto, só olhamos para o micro das empresas.” Desses mesmos (sim, os mesmíssimos!) investidores, recebo mensagens “encaminhadas com frequência” narrando a […]

Por Felipe Miranda

28 out 2024, 14:49 - atualizado em 28 out 2024, 14:49

Brasileiro feliz

Imagem: FreePik

Sabe como é: “há contradições explicáveis”. Versão machadiana para “eu posso me explicar”… quem nunca?

Em conversas raras que acontecem sempre, escuto de grandes investidores: “nós não olhamos para o macro. Somos buffettianos e, portanto, só olhamos para o micro das empresas.”

Desses mesmos (sim, os mesmíssimos!) investidores, recebo mensagens “encaminhadas com frequência” narrando a derrota da esquerda nas eleições municipais, seguidas da matéria da Folha de S.Paulo de título: “Aliados já falam em pressão de políticos e empresários por plano presidencial de Tarcísio”, no que seria o pai de todos os ralis.

Se não tem ateu em avião caindo, como poderia haver value investor focado no longo prazo diante da ameaça de sobrevivência? O “bear market” brasileiro é tão longevo e intenso que chega o momento de os sócios das gestoras resgatarem de seus próprios fundos. Não é por falta de convicção nas suas virtudes ou desconfiança nas ações, mas simplesmente porque não há mais liquidez em qualquer outro lugar. Os salários são baixos, insuficientes para pagar as contas mensais, enquanto os bônus não chegam, nem aparecem no horizonte tangível, porque a marca d’água escapa do alcançável pela vista.

Pra afogado, jacaré é tronco.

O investidor de longo prazo com interesse micro se apega à hipótese de mudança do pêndulo político e se escora no trading do próximo trigger. Passa a importar mais qual é a notícia marginal, do que exatamente a realidade dos fundamentos empresariais. Não há tempo, paciência, nem dinheiro para esperar a convergência para o valor intrínseco, pois os resgates precisam ser pagos hoje…

Preciso lhe confessar: eu não acho que esse sujeito esteja errado. A contradição é explicável. Ok, ok, talvez não seja tanta virtude pessoal conforme autoproclamado pela “nata do value investing brasileiro”. Nutro uma desconfiança particular de que a natureza dos ciclos brasileiros implica muito mais geração de beta do que de alfa, embora poucos sejam capazes de reconhecer a dinâmica. Não precisamos dessa conversa… chances altas de não estarmos preparados para ela.

Olha só: quando Warren Buffett diz não se preocupar com o macro e a política, isso é perfeitamente adequado. Ele está lá com dois oceanos, um de cada lado, diante da Bacia do Mississipi, em clima temperado, próximo da Europa, num país cuja extensão territorial se dispõe em eixo horizontal, o que significa menor amplitude de latitude e, por consequência, um clima menos diverso, facilitando a disseminação de técnicas produtivas de um lugar para outro ao longo do tempo. Para não ser acusado de determinismo geográfico, também podemos explicar o excepcionalismo americano com suas sólidas instituições, as melhores universidades do mundo, a valorização do indivíduo e das forças de mercado, a liderança tecnológica e militar. O macro importa menos, porque, apesar dos ciclos econômicos, ele funciona, independentemente da flutuação do pêndulo político. 

Como não poderia ser diferente, Buffett é resultado das leis darwinistas do mercado, tendo sido selecionado naturalmente por ser o mais adaptado ao ambiente norte-americano. Sua aplicação rigorosa, incluindo seu conhecimento tácito e o que lhe é intrinsecamente individual e intransferível, seria vencedora diante do caudilhismo latino-americano? Eu não sei. Não temos o contrafactual, tampouco a resposta seria observável. Buffett não opera esses mercados e qualquer tentativa brasileira de mimetizá-lo acarretará o problema típico da não-tradução. Por mais que tentemos copiá-lo, sempre estaremos sujeitos aos vícios e às virtudes pessoais, às questões locais e culturais, ao conhecimento tácito… nem mesmo Cherry Coke está disponível nas nossas gôndolas.

Se alguém criasse a disciplina de História Econômica Contemporânea do mercado de capitais brasileiros, poderia ter como material a seguinte linha do tempo:

i. tivemos um grande ciclo positivo entre 2003 e 2007: era o governo Lula 1. Embora possa soar contraintuitivo num primeiro momento, também podemos caracterizá-lo como uma mudança do pêndulo político. Era justamente uma alternância frente ao medo da radicalização à esquerda. A Goldman Sachs tinha criado o Lulômetro, lembra? Todos temiam o calote da dívida externa, rompimento de contratos, controle do spread bancário e por aí vai. Observamos o contrário: um governo fiscalmente responsável, com apurações de grandes superávits primários, boa condução da política monetária e respeito aos contratos. O país se beneficiou da Grande Moderação nas nações desenvolvidas e do “Global Savings Glut”, de Ben Bernanke, com a China empurrando para cima o preço das commodities.

ii. Aí veio a crise de 2008 e a recuperação de 2009, para cairmos num ciclo perverso para o mercado de capitais entre 2010 e 2015. Ali se iniciava uma guinada mais à esquerda, com nosso keynesianismo de quermesse e as sementes da nova matriz econômica. Deu no que deu. A maior recessão da história Republicana no Congresso.

iii. Como o país tem uma vocação grande para a mediocridade, mas pouca disposição a se jogar no precipício, tivemos as manifestações de rua, o áudio do Bessias, o impeachment. Temer e sua ponte para o futuro endireitam o Brasil. O Ibovespa sai de 40 mil pontos para 120 mil. Um grande rali, catalisado pela óbvia alteração da política econômica numa direção pró-mercado.

iv. O ciclo iniciado em 2016 esbarra na pandemia. Há uma recuperação cíclica até julho de 2021, quando começamos a discutir mais inflação aqui, necessidade de subir a Selic, ao que se seguiu uma série de pequenas crises: PEC do meteoro, PEC Kamikase, eleições presidenciais, PEC da Transição, mudança no Banco Central Brasileiro, política fiscal perdulária. E aqui estamos de novo sofrendo com o temor de uma versão atualizada da já velha nova matriz econômica.

Podemos ou não identificar aqui uma alta correlação entre os mercados e o pêndulo político? Note que isso não se dá necessariamente pela cor do partido de turno, tampouco se ele está à direita ou à esquerda. É muito menos ideológico do que pragmático. Quando Lula adotou uma política macroeconômica ortodoxa capaz de respeitar a aritmética elementar das contas públicas, o “Kit Brasil” simplesmente voou. O ciclo 2003-2007 criou verdadeiras fortunas na Bolsa brasileira.

Do mesmo modo, há chances não desprezíveis de que, se o tal pacote fiscal sugerido por membros do governo vier mesmo à tona, um novo rali se repita. Há consenso de que o Brasil está muito barato, a posição técnica é favorável e as empresas estão em boa forma. O investidor estrangeiro está no modo “esperar para ver”. Caso o conjunto de boas intenções de Haddad e sua equipe se transforme em medidas concretas, a apreciação dos ativos domésticos deve ser vigorosa. Perceba, porém, que isso não invalida o argumento central deste texto, de alta correlação entre o pêndulo político e o desempenho dos mercados. Se o governo realizar um ajuste fiscal consistente e amplo, será, em termos práticos, uma caminhada em direção ao Centro e o abandono de uma postura mais radical à esquerda. Abandonar as ideias de estocar vento e de que gasto é vida pode ser um excelente começo.

Superada a eleição municipal, a probabilidade de sair o tal pacote parece bastante razoável, seja porque parte da esquerda já reconhece até explicitamente a necessidade de atualizar seu discurso, seja pelo noticiado na imprensa. Lauro Jardim informa ser iminente a tomada de decisão do presidente Lula sobre o tema, sob o argumento de que “se não ajustarmos o fiscal em 2025, não haverá como liberar gastos às vésperas da eleição de 2026”.

O tipo de dependência dos mercados locais ao ciclo político não é exclusividade brasileira. Somos apenas um país latino-americano, sem dinheiro no banco, sem amigos importantes, vindo de seu caudilhismo típico. Basta olharmos o desempenho dos ativos na Argentina, entre os destaques globais de desempenho desde a eleição de Milei, capazes de atrair o interesse de investidores que há muito tempo não se dedicavam ao país, entre eles o mitológico Stanley Druckenmiller.

As vendas exponenciais de Mercado Livre na Argentina e o súbito interesse de David Vélez no país não são frutos do acaso. É o resultado do ciclo político clássico da América Latina.

Quando olho para nossos vizinhos, consigo ver o Brasil de 2026. Pode ser um prenúncio do Hexa. Ou algo ainda melhor…

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.