Day One

O Fim do Brasil não é o fim da História – e isso é uma má notícia

A tal polarização da sociedade ganhou contornos tão profundos que um lado não reconhece a legitimidade do outro.

Por Felipe Miranda

24 set 2024, 14:50 - atualizado em 24 set 2024, 14:50

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Imagem: iStock/ Ellagrin

Em março de 2022, a Intelligence Squared promoveu um painel com Francis Fukuyama e John Gray sob a pergunta provocadora “Is Liberalism Dead?” (O liberalismo está morto?)

De um lado, o defensor da clássica ideia do Fim da História. Depois de uma longa trajetória de embates dialéticos de tese e antítese na história da civilização, teríamos chegado à síntese definitiva da democracia liberal, sem adversários à altura. Segundo ele, apesar de ameaças pontuais, a recente coordenação do Ocidente na ajuda à Ucrânia demonstraria a atualidade da concepção original.

De outro, John Gray com seus pensamentos sobre o liberalismo e os novos leviatãs. Para Gray, a ideia da civilização liberal pautada na prática da tolerância já estaria superada. China e Rússia seriam autocracias capazes de desestruturar a ordem mundial, enquanto o totalitarismo woke impediria a liberdade de pensamento, obrigando-nos a incorporar o discurso identitário. Encerramos a liberdade de expressão.

As falas de Fukuayama valorizando os valores ocidentais clássicos parecem carregadas de otimismo, enquanto Gray soa mais pessimista — embora ele mesmo discorde do adjetivo. Gray não vê a história caminhando em direção a uma síntese superior. Reconhece que, do ponto de vista da ciência e do progresso técnica, a caminhada é inequívoca. Estamos indiscutivelmente melhores. Mas essa evolução não é necessariamente acompanhada nas esferas moral, política ou social.

Olhando para os desdobramentos desde a fúria do projeto de lei canadense C-16 em 2016, em que o totalitarismo woke insurgiu com força, ou desde a campanha do Brexit ancorada nas fake news, tenho me inclinado para o posicionamento de John Gray.

A tal polarização da sociedade ganhou contornos tão profundos que um lado não reconhece a legitimidade do outro. Se seu adversário político é o mal maior, então vale tudo para evitar sua chegada ao poder. Aí incluem-se, claro, invasão do Capitólio, fechamento do Congresso, perseguição a membros da Suprema Corte, repressão à imprensa. O risco de guerra civil nos EUA já ultrapassa 50%, segundo Ray Dalio.

O historiador Niall Ferguson há anos alerta para uma Segunda Guerra Fria em curso, traçando paralelos da situação atual entre EUA e China com aquela vivida entre EUA e União Soviética. Mais recentemente, no entanto, a preocupação ficou um pouco maior. Há três meses, Ferguson escreveu “we’re all soviets now” (somos todos soviéticos agora). Será mesmo que estaríamos do lado derrotado desta vez? Se a China invadir Taiwan, viveríamos outra Crise dos Mísseis?

O governo dos EUA gasta mais com juros da dívida do que com serviço militar, numa inversão que tipicamente levou ao declínio da grande potência de turno. As lideranças estão envelhecidas. O cidadão médio não se sente representado pela ideologia identitária das elites e se incomoda com a disparidade de renda. Há enorme desconfiança com instituições canônicas norte-americanas. De acordo com pesquisa da Gallup, o percentual de pessoas que confia na Suprema Corte, nos bancos, nas escolas públicas, na presidência e nas grandes empresas de tecnologia está hoje entre 25% e 27%. Para a imprensa institucionalizada, justiça criminal e Congresso, estamos abaixo de 20%.

Como gosta de insistir Deirdre McCloskey, sem judiciário independente e sem imprensa livre, não há democracia. Essas duas grandes instituições estão no epicentro da insatisfação popular. Elas sempre tiveram (e terão!) seus problemas, mas, não sei, a impressão que tenho é que antes havia uma certa triagem. Grandes atrocidades ou barbaridades eram, em sua maioria, filtradas pela imprensa tradicional. Havia uma certa curadoria. Ou, sei lá, numa premissa mais fraca, ao menos ali não se valorizava o estapafúrdio.

Não é só que as redes sociais deram voz aos idiotas, conforme resumiu Umberto Eco. Estamos um passo à frente (no caso, atrás). O algoritmo estimula o engajamento, sem filtros ou julgamentos. Ele quer, por construção, ver o circo pegando fogo. Valorizam-se, assim, o extraordinário, o corte lacrador, o histriônico, o extremista, o radical, o não-ponderado. A razão equilibrada perde espaço para o desequilíbrio da emoção. Sonhamos com liberais centrados combatendo a pauta identitária e o gabinete do ódio. Acordamos com a versão 2.0 do extremismo, em que os campeonatos digitais de Andrew Tate superam os disparos de robôs no WhatsApp. Como acabou de escrever Fernando Schuler na Veja, “O ecossistema digital fez o hooliganismo ganhar espaço nas democracias.” O “pequeno” problema é que as democracias liberais foram constituídas justamente abrindo mão do uso da violência. Deixamos o hooliganismo lá pelo século XVI para retomá-lo agora.

Quando Tallis Gomes, antes desse último acontecimento, foi perguntado pela Folha sobre sua declaração de que não contratava esquerdista e estimulava jornadas de trabalho de até 80 horas, respondeu: “eu usei um termo mais polêmico porque sabia que iria chamar atenção. A gente vive uma guerra por atenções, então é positivo para o nosso negócio que haja mais atenção e que isso se transforme em vendas.” Na “economia da atenção”, portanto, vale tudo: termos mais polêmicos, mentiras de coaches, desrespeito, machismo.

Ao pensar sobre nosso país exclusivamente, também tenho a sensação de que caminhamos para trás. Feitos 10 anos do Fim do Brasil, não aprendemos nada com os erros do passado. Ainda pior: queremos resgatá-los, enaltecendo o princípio da contraindução de Mario Henrique Simonsen.

Entramos num período de contrarreformas ou de restauracionismo de ideias praticadas 15 ou 20 anos atrás que não funcionaram.

Verbalizamos contra a independência do Banco Central e nomeamos um “menino de ouro” para a sua presidência, cujo histórico de publicações literárias remete a luta de classes e ao fetiche marxista com o dinheiro. Ressuscitamos um problema monetário que não existia. Questionamos as reformas da previdência e trabalhista, tentamos nomear amigos do rei para conselhos de empresas privatizadas, debatemos re-estatizações, enfraquecemos a lei das estatais e sua governança, duvidamos da competência do presidente do IBGE.

Enfraquecemos o poder Executivo a partir de menor espaço das MPs e dos vetos presidenciais, dando ao Congresso emendas parlamentares vultosas sob o orçamento impositivo. O desequilíbrio entre os poderes abarca o Judiciário, que vira uma espécie de legislador de última instância e adota o caminho de decisões monocráticas, em processos kafkianos e outros cujo resultado é fomentar a insegurança jurídica.

A política fiscal é um capítulo à parte. Aqui, sim, temos um problema estrutural, de Estado, que transborda o horizonte de governo. Em vez de combatê-lo, porém, a administração de turno aprofunda a fragilidade.

O arcabouço fiscal já era pouco ambicioso e recheado de inconsistências desde a largada. Mas dada a alternativa e o medo de uma hecatombe, foi aceito como algo “pior do que o necessário, melhor do que o temido”, nas palavras de um famoso gestor. No entanto, para cumprir a meta fiscal, o governo abusa da elasticidade contábil e distorce as contas públicas, ainda que sua versão oficial esteja desconectada da realidade objetiva.

O orçamento vira uma peça de ficção, com receitas que estão lá e não deveriam e despesas que não estão lá e deveriam. Abusamos da criatividade contábil, tirando o Pé de Meia e o Vale Gás do formalismo da meta, o que lembrou os dias mais sombrios de Arno Augustin. 

O último relatório bimestral de receita e despesa foi particularmente problemático, pois trouxe indicações no sinal contrário àquele esperado pelo mercado. A expectativa de consenso apontava para um arrocho fiscal adicional entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões. Houve um tímido bloqueio de R$ 2,1 bilhões e um descontingenciamento de R$ 3,8 bilhões, resultando em afrouxamento fiscal adicional de R$ 1,7 bilhão. Quando todos esperavam um sinal positivo, ainda que marginal, encontramos uma evidência negativa.

O Brasil está barato com o Ibovespa negociando a 8x lucros, sob lucros corporativos que crescem 15/20% ao ano. Ou seja, logo ali na frente, estaremos falando de Preço sobre Lucro da ordem de 6x. Até 2026, o Fed pode ser a ponte até uma profunda discussão sobre o Brasil. Antes, porém, convivemos com a certeza de que a civilização não caminha em linha reta. Não há fim da História para quem parece condenado à eterna mediocridade. 

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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