“Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas;
hoje, os idiotas pensam pelos melhores.
Criou-se uma situação realmente trágica:
ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.”
Nelson Rodrigues
Em seu livro já clássico “O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro”, Carl Sagan oferece uma comparação estatística simples, que, se levada a sério, pouparia esforços de crédulos e causaria abalos sísmicos ao turismo de uma cidade francesa. Diz assim (frisa-se: palavras dele):
“Em 1858, uma aparição da Virgem Maria foi relatada em Lourdes, França, e desde então centenas de milhões de pessoas desenganadas têm ido a Lourdes na esperança de serem curadas. A Igreja rejeitou a autenticidade de um grande número de pretensas curas milagrosas, mas aceitou apenas 65, em quase um século e meio. A taxa de regressão espontânea em todos os cânceres é estimada entre 1 em 10 mil e 1 em 100 mil. Se apenas 5% dos que vão a Lourdes ali estivessem para tratar de seus cânceres, deveria haver entre 50 e 500 curas milagrosas só de câncer. Como apenas 3 dos 65 casos autenticados são de câncer, a taxa de regressão espontânea em Lourdes parece ser inferior à que existiria se as vítimas tivessem simplesmente ficado em casa.”
Se, acometido pela Covid-19, você tomasse um remédio qualquer, suponhamos aleatoriamente uma medicação tradicional para tratamento de malária e terminasse se recuperando, poderia afirmar que melhorou por conta da ingestão do remédio?
Estamos diante da falácia lógica clássica “post hoc, propter hoc”, a confusão entre correlação e causa. Não é porque algo aconteceu depois de um determinado fato que derive dele, que haja alguma relação causal entre as coisas.
Se estamos no campo das crenças ou da ideologia, saímos da racionalidade por construção e, portanto, nos afastamos da lógica, incorrendo mais facilmente em falácias e conclusões equivocadas. Se você é um devoto de Nossa Senhora, visita Lourdes e volta curado, vai atribuir quase necessariamente a melhora à Virgem. Se você tem um político de estimação e ele prescreve um medicamento qualquer, muito possivelmente você vai conferir poder de cura ao remédio, ainda que a ciência insista no contrário.
Não é nada com você, em particular. É da natureza humana. Misturamos aqui dois vieses cognitivos muito bem documentados na literatura das Finanças Comportamentais: o de confirmação e o halo effect.
O primeiro se refere à tendência de perseguirmos informações, argumentos e fatos que confirmem nossas convicções prévias, enquanto evitamos o contraditório, muitas vezes sem nem conhecê-lo. Pulamos para a conclusão antes mesmo dos contra-argumentos; da tese à síntese, sem passar pela antítese. Matamos a ciência e sua cartilha dialética.
O segundo descreve a tendência de, por conta de uma virtude particular, fazer-se um julgamento geral, ainda que uma coisa não tenha necessariamente nada a ver com a outra. Um garçom educado e dedicado no restaurante é percebido como inteligente e íntegro. Uma pessoa simpática torna-se bonita. E, claro, um político amado vira epidemiologista e sommelier de vacina.
Uma das vantagens das decisões de sistemas quantitativos sobre aqueles discricionários e subjetivos do humano é que ele não tem religião, crença ou preferência político-partidária — assumindo, claro, que seus programadores não criaram setups para sair comprando ou vendendo conforme as aparições do Papa Francisco ou as bravatas populistas à esquerda e à direita.
Escrevo este Day One num momento em que sobe a temperatura política. Pesquisas de intenção de voto apontam a vitória do ex-presidente Lula na eleição de 2022. E matéria do UOL sugere participação do então deputado Jair Bolsonaro em esquema de rachadinha. O debate fica acalorado, as conversas sobem o tom, a educação e a cordialidade dão lugar às ofensas. A racionalidade vai embora.
Há de se ter muito cuidado para suas decisões de investimento não serem contaminadas pelo fundamentalismo religioso ou político-partidário.
Seja na CPI da Covid, seja na matéria do UOL, ao menos até aqui, sobra muito mais ruído do que sinal. O barulho das redes sociais em prol do impeachment, até o momento pelo menos, não encontra materialidade em fatos, tampouco dispõe-se de ambiência política para tanto. E qualquer suposição sobre as eleições de 2022 neste momento tem a mesma validade prática de uma conversa sobre como poderíamos colonizar Saturno.
Contra a cloroquina e contra a mortadela, a verdade. O fundamentalismo que nos interessa é aquele de Graham e Buffett. A verdade objetiva sobre as ações está nos demonstrativos financeiros trimestrais. Antecipar o que ali pode conter oferece a resposta para tempos sombrios, em que só a ciência como uma vela no escuro pode iluminar o caminho.
A primeira amostra que tivemos nesse sentido veio da prévia operacional de Cury, inaugurando a safra de divulgação de lançamentos e vendas contratadas de incorporadoras no segundo trimestre. Os lançamentos montaram a R$ 686 milhões no trimestre, o que representa uma alta de 120% sobre mesmo período de 2020 e de 16% frente aos três meses imediatamente anteriores. Vendas contratadas ficaram em R$ 682 milhões, subindo 134% e 15%, respectivamente.
Números bons no geral, para desafiar a desconfiança do mercado com incorporadoras. É a realidade se impondo, gradativamente, sobre os preconceitos.
Com exceção de Eztec e Even, esse segundo trimestre deve mostrar resultados fortes para home builders em geral. Mais do que isso, abre espaço para um segundo semestre muito forte, com queda de preço dos insumos (aço já caiu 2,5% na semana passada, segundo a Platts), bons lançamentos de projeto e demanda vigorosa.
Além da possível boa reação de Cury hoje, abre um read through interessante para todos os players de baixa renda. Direcional é minha favorita no segmento. Tornando curta uma longa história, enquanto Cury vale R$ 3 bilhões, Direcional vale R$ 2 bilhões, sendo que deve se aproximar bastante dos números de Cury nos próximos trimestres com ramp-up de Riva, com margens semelhantes.
Outro destaque importante desta temporada de resultados e também da próxima deve ser o setor de commodities. Com o minério de ferro voltando a US$ 220 por tonelada e o petróleo a US$ 78 por barril, vamos começar a ventilar uma geração de caixa livre para o acionista no ano próxima a 30% do valor de mercado de Vale e Petrobras.
Não é fé. É pura conta. E é muita coisa.
Um beijo muito carinhoso para minha prima Lourdes, que não vejo há bastante tempo mas tinha uma posição grande de Vale e Petrobras. Com os dividendos a caminho, ela já deve estar se preparando para visitar o interior da França no final do ano.