Day One

Os 12(0) trabalhos de Hércules

Se a proposição estiver certa, precisaremos de melhora dos resultados propriamente dita para vermos o Ibovespa alçando voos mais altos. Do ponto de vista macro, estamos atrás de mais clareza sobre os juros nos EUA, sobre o ritmo do afrouxamento monetário aqui e de avanços da pauta econômica no Legislativo.

Por Felipe Miranda

17 jul 2023, 15:20 - atualizado em 17 jul 2023, 15:20

Hércules
Imagem: Pexels

Só mais recentemente fui entender as dificuldades da relação com meu pai. Claro que preferia ter chegado nesse estágio ainda com ele em vida. Mas fico contente por, mesmo tardiamente, poder ressignificar com mais arejamento parte importante da minha existência. Na psicanálise, a provocação “no Brasil, até o passado é incerto” tem outro significado.

Havia na minha relação com o Ramiro uma ambivalência grande, cuja compreensão exigiu alguns bons anos de terapia. Uma tentativa de aproximação e imitação, acompanhada de uma simultânea repulsa. Hoje vejo essa dicotomia como fruto de nossa semelhança, um convívio representativo de um espelho que eu não gostaria de ver, desembocando num medo de repetir com meus filhos erros cometidos contra mim. 

Uso o termo “erros” por falta de palavra melhor, talvez só para facilitar entendimentos. Tudo que se sabe ao ser pai é que você vai errar. Se ninguém dispõe de manual nem pode ensaiar, o resultado natural vai ser um caminho permeado pelo melhor que se pode oferecer, mas ainda assim com consequências indesejadas no meio do caminho. A antropologia já identificou como comunidades habitantes de lugares muito inóspitos e convivência com a natureza mais selvagem julgam menos o comportamento alheio — nenhum animal na floresta fica observando os tropeços ou escorregões do coleguinha. Cada um vive a vida que pode.

Foi talvez essa tentativa de me aproximar ou de superá-lo que me levou ao mercado financeiro. Gostaria de ter começado com uma postura racional, científica. Mas não foi assim, claro. Iniciei fazendo alguns trades, escorado em preceitos da análise técnica ou em alguma narrativa do momento. 

No final dos anos 90, era tudo sobre tecnologia (qualquer semelhança com a atual realidade pode não ser mera coincidência) e internet. Por aqui, viveríamos as benesses da TV a cabo e lá fui eu, também emulando meu pai, comprar as PLIM4. Como não poderia ser diferente, as Globo Nabo deram… nabo!

Sensível aos vieses cognitivos clássicos, fora do meu conhecimento à época, cometi todos os erros clássicos possíveis. Cedi ao medo de ficar de fora, comprei mais depois de cair na tentativa de fazer preço mé(r)dio, reverberei notícias favoráveis enquanto negava contra-argumentos (viés de confirmação), contabilizei número crescente de amigos usuários de TV a cabo (viés de disponibilidade), me achei mais bem informado e visionário do que os outros (excesso de confiança), demorei demais para realizar o prejuízo.

Foi um desastre financeiro completo. Mas intelectualmente estimulante, além de muito disciplinador. Consigo ver as raízes originais da minha monografia na USP penetrando o subsolo daquela tentativa edípica de começar no mercado financeiro. Àquela altura, eu já lia bastante sobre value investing, Buffett, Fisher, Graham, Greenwald e por aí vai. Essa abordagem passou a fazer muito mais sentido pra mim, tanto intelectual quanto financeiramente — comecei a adotá-la nos meus próprios investimentos com resultados diferentes daqueles do debutante.

Então, me deparei com aquele famigerado artigo do Andrew Lo: “Foundations of Technical Analysis: Computational Algorithms, Statistical Inference, and Empirical Implementation”, que basicamente encontrava capacidade preditiva na Análise Técnica? Aquilo resgatou sentimentos e curiosidades antigas: como pode a apropriação de elementos da geometria analítica ser útil para prever preços de mercado? Veja: não era um influencer qualquer falando, tampouco um debate de fórum de ações. Era o Andrew Lo, com todo seu rigor científico e o peso do MIT.

Até fazia algum sentido pra mim o fato de que suportes e resistências refletiam níveis de troca realizados por um volume maior de pessoas e aquilo acabaria funcionando, por ancoragem, como um polo magnético natural, em que um novo volume grande de trocas seria realizado no mesmo nível, pois as pessoas, mesmo de maneira não deliberada e não muito racional, acabam se apegando aos seus preços originais.

Também era intuitivo que cada preço refletia um determinado valuation, ao qual precisaria estar associado um respectivo cenário, um conjunto de fundamentos econômicos. Ou seja, para superação de determinados níveis de resistência ou suporte, haveríamos de ter: uma mudança importante de aspectos conjunturais ou estruturais associados àquela companhia, uma disposição para se pagar mais por aquela companhia ainda que o cenário não tivesse mudado ou, no mínimo, um aumento de fluxo aleatório de curto prazo.

Essas coisas, no entanto, não me pareciam suficientes para responder na minha cabeça a pergunta direta e objetiva: como pode, em termos práticos e de maneira um tanto grosseira aqui, a ciência ter demonstrado que a Análise Técnica funciona?

Daí me veio a ideia de que, ao fornecer ao investidor um instrumental pragmático e quantitativo, o método, apoiando-se basicamente em geometria analítica, poderia driblar os vieses comportamentais clássicos, que estavam ficando cada vez mais populares mesmo dentro da ortodoxia (em termos históricos, é no mínimo curioso que Richard Thaler, um dos maiores expoentes da economia comportamental, hoje ocupe uma cadeira na tipicamente neoclássica Escola de Chicago). Sem os vieses típicos, o investidor poderia se dar melhor do que a média.

Confesso que os resultados empíricos da monografia não foram propriamente auspiciosos. Talvez eu pudesse dizer ser um pouquinho mais direto e reconhecer que foi um fracasso retumbante. Aliás, essa é uma dinâmica meio recorrente na ciência jovem: você formula hipóteses interessantes, faz milhões de testes diferentes e não prova nada!

Seja como for, aquilo ficou em mim e possivelmente alimente minha rejeição a esses fundamentalistas religiosos que atuam em Bolsa, aqueles que não somente dispõem de um método infalível para ganhar dinheiro como têm certeza de que apenas a sua abordagem pode funcionar! 

Olhemos de maneira objetiva para o que tem acontecido com o Ibovespa. Sem opiniões ou juízos de valor, apenas uma constatação objetiva: a gente vai ali até os 120 mil pontos e volta! Vai e volta. Já testamos esse nível ao menos três vezes e, então, batemos no muro.

O que rola?

Entendo que essa dinâmica se alinhe à ideia que tenho defendido de que a primeira fase do bull market, em que observamos uma expansão dos múltiplos por conta do prognóstico de redução dos juros à frente, chegou ao fim ou estamos muito perto disso. Essa fase é caracterizada por muita cobertura de posições vendidas, altas vertiginosas e valorização indiscriminada dos ativos (mais beta do que alfa), tendo, curiosamente, as empresas mais problemáticas e endividadas como protagonistas.

Então, feito esse realinhamento de preços em direção a múltiplos maiores, entramos numa segunda fase, em que os lucros precisam subir. Essa é uma etapa costumeiramente mais longeva, mas mais bem comportada, sem grandes disrupções para cima e em que o stock picking começa a fazer diferença (mais alfa do que beta).

Se a proposição estiver certa, precisaremos de melhora dos resultados propriamente dita para vermos o Ibovespa alçando voos mais altos. Do ponto de vista macro, estamos atrás de mais clareza sobre os juros nos EUA, sobre o ritmo do afrouxamento monetário aqui e de avanços da pauta econômica no Legislativo. Em termos micro, a temporada de resultados e seus guidances informais para o segundo semestre serão fundamentais.

Ibovespa a 140 mil pontos? Eu acredito, com a ressalva de que a caminhada até lá pode ser mais sinuosa e lenta do que todos nós gostaríamos.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.