Day One

Panela velha é que faz comida boa?

Estou com saudades de Senhora do Porto, interior de Minas Gerais. A turma na Faria Lima acha que interior é Ribeirão Preto, Campinas, São José do Rio Preto. Na Vila Madalena, o pessoal pensa que é Jalapão, Chapada dos Veadeiros, Bonito, e por aí vai. Nada contra esses lugares. Ao contrário, acho ótimos, mas não são aquilo a que me refiro quando falo de “interior”. 

Por Felipe Miranda

13 jan 2021, 01:26

“Que saudade imensa do campo e do mato
Do manso regato que corta as campinas
Aos domingos ia passear de canoa
Das lindas lagoas de águas cristalinas
Que doce lembrança daquela festança
Onde tinha danças e lindas meninas
Eu vivo hoje em dia sem ter alegria
O mundo judia, mas também ensina
Estou contrariado, mas não derrotado
Eu sou bem guiado pelas mãos divinas.”

Belmonte

 

Estou com saudades de Senhora do Porto, interior de Minas Gerais. A turma na Faria Lima acha que interior é Ribeirão Preto, Campinas, São José do Rio Preto. Na Vila Madalena, o pessoal pensa que é Jalapão, Chapada dos Veadeiros, Bonito, e por aí vai. Nada contra esses lugares. Ao contrário, acho ótimos, mas não são aquilo a que me refiro quando falo de “interior”. 

Chão batido, curral em que você entra tentando desviar, muitas vezes sem sucesso, das bostas de boi, porteira, fogão a lenha, porta cuja tranca se dá por meio de um pedaço de madeira grosso atravessado na perpendicular. Campo de futebol no meio do pasto — e também com bosta de boi; você escolhe em que posição vai jogar baseado na distribuição das fezes dos animais. 

“Hoje eu vou na ponta esquerda.” 

“Mas você é destro, Felipe. Nunca jogou na ponta esquerda.”

“Você que não está me acompanhando… sou bom em cortar pra dentro e entrar no facão, estilo Messi, só que do outro lado.”

(rsrsrsrs)

Por conta da pandemia, fiquei sem essas coisas neste ano. Não sei se é muito bem verdade, mas as notícias que chegam — provavelmente com algum exagero, mas quem topa o risco? — apontam para uma situação meio ruim em Guanhães. “Lipe, mas nem podia ser diferente. Lá, ninguém usa máscara, não respeita isolamento social, fica se abraçando. Claro que ia dar nisso.”

Talvez até pudéssemos ir, com os devidos cuidados; de carro quem sabe… mas com a Maria tão pequena… não sei se fizemos certo, mas preferimos ficar, sob os protestos típicos da família: “Você não liga mais pra gente…”.

Mal sabem eles o quanto me faz mal não ir visitá-los.

Sou formalmente paulistano, nascido e criado na Zona Oeste, entre Sumarezinho, Vila Madalena, Pinheiros e Cerqueira César, muito influenciado por isso. Ao mesmo tempo, ter passado boa parte das férias da infância e da adolescência em Senhora do Porto também fez parte da minha constituição. Essa ambivalência tão gritante entre um mundo cosmopolita, moderno, urbano, e outro rural, bucólico, pouco integrado à tecnologia de ponta, representa a coexistência interna de vários elementos simultâneos.

Até mesmo a formação musical oferecia mundos antagônicos, tipicamente percebidos como imiscíveis. Íamos de Cometa, saindo de São Paulo para Belo Horizonte, ouvindo “Be Quick or Be Dead”, para sermos recebidos na praça central, do lado do coreto e onde fica hoje o bar do meu tio Dacinho, perto da escola municipal, com “O Menino da Porteira”.

As minhas ambivalências também se verificam na formação intelectual. Sempre fui muito estudioso, debruçado sobre as teorias acadêmicas da fronteira do conhecimento. Ao mesmo tempo, sem nenhum demérito aos livros e aos journals, mantive comigo a crença de que muito conhecimento emanava da rua, da sabedoria popular, da vivência propriamente dita. Curiosamente, encontrei no Sidarta, de Hermann Hesse, um símbolo da educação clássica literária formal, uma lição importante. Nada pode substituir a experiência vivida.

Ontem à noite, assisti a um vídeo de família antigo. Um dos meus tios, completamente embriagado (nenhuma novidade), cantava: “Tô de namoro com uma moça solteirona; A bonitona quer ser a minha patroa; Os meus parentes já estão me criticando; Estão falando que ela é muito coroa; Ela é madura, já tem mais de trinta anos; Mas para mim o que importa é a pessoa; Não interessa se ela é coroa; Panela velha é que faz comida boa; Não interessa se ela é coroa; Panela velha é que faz comida boa”. 

Não há aqui uma sabedoria popular formidável para o momento? Deveríamos nós comprar a “nova economia” ou nos voltarmos às commodities e aos bancos?  

Nos primeiros dias de 2021, com a tal “onda azul” nos EUA, houve um movimento intenso em prol de migração em direção às “panelas velhas”, cuja comida seguiria muito boa, diante de valuations convidativos, de mais gastos fiscais que ensejassem matérias-primas mais caras, pressão para cima sobre as taxas de juro de mercado e dólar mais caro. O interesse na tecnologia e nos cases de crescimento teria diminuído, por conta do medo da regulação e de mais impostos do Partido Democrata e dos efeitos dos juros de mercado sobre as taxas de desconto, afetando dramaticamente casos de growth.

Na sexta-feira passada e ontem, porém, o movimento foi justamente o contrário. Sob o FOMO, o medo de ficar de fora, muitos abandonaram suas teses de investimento preferidas e foram comprar bancos e commodities. Muitos quebraram a cara, ao menos momentaneamente. Nada pior do que o overtrading, uma corrida atrás do rabo, em que você decide ir para um momentum trade e, então, descobre que o momento acabou, da forma mais dura, perdendo dinheiro. 

O que fazer agora?

No já clássico “How George Soros Knows What He Knows”, a brasileira Flávia Cymbalista aponta que o megainvestidor somatiza o descontentamento com suas posições. Sente dor nas costas quando seu portfólio está desbalanceado e há nele algum erro. Não há nada de sobrenatural ali. É apenas a intuição, uma capacidade não estruturada de reconhecer padrões tacitamente, apontando algum desconforto. 

Passo longe, bem longe mesmo, de ser George Soros. Não tenho dor nas costas, nem seus bilhões. Mas também somatizo bastante as coisas. Durmo especialmente mal quando estou preocupado e, em momentos mais agudos de estresse, tenho dor de garganta e febre.

Sempre que acordo, pego o celular e checo os mercados. Instintivamente, procuro o comportamento da variável que mais tem me preocupado naquele momento — fui perceber isso só recentemente. Nos últimos dias, minha primeira página tem sido o yield do Treasury de dez anos. É esse cara, pra mim, que tem ditado o fluxo do capital em âmbito global. 

Sob a expectativa de retomada da economia e pacotes fiscais gordos, com potenciais implicações para a inflação, ele tem subido neste ano, influenciando as taxas de juro de mercado pelo mundo e os valuations de nomes associados a crescimento, ao mesmo tempo em que desperta o interesse por bancos e commodities. 

Há espaço para continuidade do movimento?

Em condições normais de temperatura e pressão, entendo que sim. Parece razoável supor a caminhada em direção a um yield de 1,25% para o Treasury de dez anos. Seria uma simples volta a uma mínima normalidade pós-pandemia, com um quadro fiscal mais deteriorado. 

A partir daí, acho mais difíceis novas altas. Claro que pode haver algum overshooting de curto prazo, mas que tenderia a ser corrigido depois. A vitória democrata no Congresso americano é muito apertada, de modo que fica difícil a negociação de pacotes fiscais tão amplos. O problema mundial, há dez anos, é de baixo crescimento e baixa inflação — até há pouco tempo, discutíamos a “japonização do mundo”. Isso se deve a fatores seculares, como tecnologia e demografia, que não vão mudar; ao contrário, se intensificam a cada momento. Existe ainda um problema prático de que, sob o tamanho das dívidas soberanas e corporativas, uma subida rápida e intensa dos yields quebraria o mundo — uma coisa é dever 120% do PIB com juro zerado, outra coisa é ter a mesma dívida com juros de 4%. Seria razoável supor que os bancos centrais voltariam a atuar de forma mais pesada se os rendimentos dos títulos subissem de maneira vertiginosa.

Aponto ainda um fator de risco adicional. Talvez seja até mais uma elucubração. Possivelmente os três leitores tenham visto a China impondo lockdowns bastante restritivos a algumas províncias. E também os recordes dos preços da soja e do milho (o que pode ser bem ruim para frigoríficos); o minério de ferro e o aço sobem vertiginosamente. Então, me vem à cabeça que a China, de onde temos poucas informações confiáveis, pode estar estocando tudo que pode, de tudo, para se proteger de um eventual fechamento mais destacado de sua economia em meio à escalada de casos de coronavírus.

Em sendo o caso, poderíamos incorrer num susto súbito com preços de commodities, para uma posterior retomada. 

Dito isso, parece razoável ter, sim, exposição a alguns nomes de commodities, mas eu focaria em nomes depreciados frente aos pares internacionais, menos alavancados e com menor custo marginal de produção — se você pensou em Vale, estamos na mesma página. 

Ao mesmo tempo, manteria a confiança nas teses seculares de tecnologia, e-commerce, omnichannel, etc. 

Se a tendência agora fosse em favor dos nomes da velha economia, ela seria a nova, e a nova seria a velha. A linha do tempo só caminha em uma direção. 

A sabedoria popular prescreve: “Bezerro bom não berra”. Não há razão para reclamar depois que aconteceu.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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