Day One

Parricídio

“Antes de partirmos para o assunto do dia propriamente dito, precisamos falar […]”.

Por Felipe Miranda

25 jul 2022, 10:38 - atualizado em 25 jul 2022, 10:39

Antes de partirmos para o assunto do dia propriamente dito, precisamos falar de Previdência. 
 
Se você conversar com qualquer private banker ou gestor de grandes fortunas, ele vai falar da importância desse segmento, falar de suas vantagens tributárias e sucessórias, da evolução do nicho nos últimos anos e da existência de excelentes oportunidades de investimento, para você, seus filhos e netos. Há uma espécie de regra de bolso dentro do “high net worth” ou no mesmo no “ultra high” (famílias super-ricas) em prol da alocação de cerca de 10% do patrimônio em previdência.
 
Ainda assim, quando observamos de maneira objetiva os dados, vemos as famílias brasileiras com baixa alocação em Prev. Talvez ainda pior, boa parte do dinheiro desse segmento está destinado a fundos ruins, com taxas exorbitantes, gestão pouco eficiente e resultados fracos. 
 
O que acontece? Ontem, fiz uma conversa rápida e efetiva com o Bruno Mérola sobre o tema. Caso você não tenha visto, fica aqui o convite. O papo representa uma espécie de abertura da Semana da Previdência, em que estamos muito dedicados a estimular o importante (e necessário!) investimento nessa categoria, a partir de um esforço educacional profundo e do oferecimento de vantagens destacadas exclusivas para estes próximos dias. 
 
Se essa pode ser considerada a segunda classe mais essencial para a construção de patrimônio, perdendo apenas para a urgente e impreterível reserva de emergência, havemos de dedicar-lhe a devida atenção. É como se o futuro da sua família viesse pedir um carinho. 
 
Feitos o preâmbulo e o convite, chegamos ao universo das ações. 
 
Uma dúvida tem me acompanhado nos últimos meses. Mais do que uma dúvida, um incômodo a me perturbar, como uma obsessão dificultando nosso sono, levando o pensamento a um ritmo acelerado demais para aquela hora da noite: 
 
“E se todos nós estivermos assentados sobre premissas erradas? E se nossas referências estiverem ultrapassadas? E se os ombros de gigantes sobre os quais nos apoiamos já não mais oferecem a capacidade de enxergar mais longe (esclarecimento: seja qual for a resposta, eles continuarão gigantes, sem perder sua genialidade e/ou sua importância histórica)? Será que estamos todos munidos de um mapa errado?”
 
Deixe-me ser um pouco mais preciso. Em alguma medida, todos nós temos em Warren Buffett, Benjamin Graham e Charlie Munger uma espécie de alma mater. Toda a indústria de ações brasileira (e talvez mundial) de certa forma bebe desta fonte. Claro que devemos muito, especificamente, à Dynamo e à IP, porque sem eles nada disso seria possível. Daí derivam basicamente todas as ramificações do value investing brasileiro, com os devidos méritos e referências. Mas, no fundo, como esses também remetem ao trio original do value investing, é quase como se falássemos da mesma coisa. 

Como testemunho pessoal, eu mesmo devo gratidão, ainda que muitos deles sequer saibam, a essa turma. Em paralelo à leitura dos clássicos buffettianos, lia com especial interesse as cartas da Dynamo, da Fama, da Skopos; aqueles “performance attribution” da Verde, falando de Belgo, Sadia e tantos outros. Uma confidência: não fossem as geniais cartas da Galleas, em particular aquela com a foto do Gregori Perelman na capa sobre a conjectura de Poincaré (os bons de memória vão se lembrar!), talvez não estivéssemos aqui.
 
Quando a Bia, hoje COO da Empiricus, ia se formar em jornalismo na Cásper Líbero (entre as 12 faculdades que ela fez), conversamos sobre um possível tema para sua monografia. Minha sugestão foi uma seleção de entrevistas com os gestores de recursos brasileiros, à luz daquela brilhante série do José Márcio Rego: “Conversas com economistas brasileiros”. Pela maré das circunstâncias, o belo trabalho acabou virando “Conversas com financistas brasileiros”. Ficou ótimo, mas ampliou um pouco mais o escopo. A ideia original permanecia lá. Anos depois, se transformou no livro “Conversas com gestores de ações brasileiros”, da Luciana Seabra. 
 
Era uma espécie de homenagem ou, quem sabe, pequena retribuição intelectual e literária aos grandes gestores locais, que, frise-se, são de classe mundial.
 
Por anos e anos, esse pessoal ofereceu retornos espetaculares aos seus cotistas. E todos nós devemos deferências a essa turma. 
 
No entanto, e falo isso com uma mistura de interesse epistemológico e dor no coração, uma investigação mais profunda identifica uma mudança dessa outperformance típica desses fundos de altíssima qualidade. Alguns deles, talvez até a maioria, que continuam brilhantes e admiráveis, têm encontrado notáveis dificuldades em superar o seu benchmark. Se fosse algo de curto prazo, eu não me interessaria tanto pelo tema. Faz parte da própria natureza da coisa. Ocorre que, mesmo se estendermos o horizonte para três, quatro, seis anos, encontraremos a mesma conclusão.
 
Teriam esses gênios perdido seus superpoderes? Seria isso algo conjuntural ou estrutural? O que poderia explicar essa dinâmica?
 
Ofereço algumas hipóteses – e são mesmo hipóteses, que precisariam ser submetidas a uma avaliação científica e ao teste do tempo para se verificarem:
 

1. Tamanho: esses fundos ficaram grandes demais. Uma coisa é gerir R$ 100 milhões. Outra, bem diferente, é tocar R$ 10 bilhões. A estratégia que fez o sucesso de muita gente no começo de suas gestoras não pode mais ser replicada com uma escala tão grande. Aquelas small caps que se multiplicavam por n vezes agora não cabem mais no portfólio. Ao menos, não naquela proporção original.

2. Qualidade do passivo: a proliferação das plataformas de investimento mudou a dinâmica do passivo de muita gente. Interessado num gordo rebate da taxa de performance, o agente autônomo enfiou no seu cliente um fundo que, muitas vezes, não combina com o perfil do investidor, que mal conhece o gestor em questão. Quando a maré baixa (e é justamente quando o gestor precisa de mais dinheiro), o cliente saca, muitas vezes, inclusive, estimulado pelo agente autônomo, porque a marca d’água está distante e o rebate da taxa de performance também. O gestor se vê obrigado a vender na hora ruim, gera pressão adicional sobre as próprias cotas, preocupa ainda mais o investidor, que volta a sacar. Inicia-se um ciclo vicioso.

3. Aumento da competição: lembra daquele discurso do Jeremy Irons no filme “Margin Call”? Embora os bons gestores de ações sejam brilhantes (como de fato são!), a verdade é que há muita gente brilhante por aí. Quando essa história começou, dava para amarrar cachorro com linguiça. Com um terminal Bloomberg à sua frente e dois estagiários do ITA, todo mundo é inteligente. A assimetria de informação é muito menor e fica bem mais difícil gerar alpha.

4. Faltam opções: hoje existem mais gestoras do que boas ações para comprar. Por mais que o mercado brasileiro tenha se sofisticado e ganhado alternativas, o universo de ações passíveis de investimento pelos fundos maiores é restrito. Os portfólios terminam muito parecidos. Todo mundo compra mais ou menos a mesma coisa. Com variações do mesmo tema sem sair do tom, compram-se Natura, Lojas Renner, Localiza, Hapvida, Magazine Luiza, Raia, Weg… vem uma onda de resgates na indústria e todo mundo é empurrado a vender as mesmas coisas. Bom, deu no que deu.

5. Um ciclo ruim do quality: treinados em Warren Buffett e Charlie Munger, toda essa turma carrega um peso grande nas chamadas “ações de qualidade”. Sólidas vantagens competitivas de longo prazo, marca forte, bom management, margens altas, alto retorno sobre o capital investido, altas barreiras à entrada. Por aí vai. Dada sua excelência operacional e o bom crescimento dos lucros por ação no longo prazo típicos dessa seleção, ela normalmente negocia com múltiplos bem altos, em especial num mercado que, como vimos, carece de muitas opções. Então, chega um ciclo de aumento de taxas de juro e a turma do quality, tradicionalmente mais cara, sofre mais, em especial na comparação com o Ibovespa, muito pesado em bancos e commodities, de múltiplos mais baixos, geração de caixa no presente e menos afetados pelo ciclo de alta dos juros.
 

Em resumo, se o quality voltar a performar bem e o ciclo de alta de juros estiver mesmo perto do fim, talvez possamos ver a volta da era de ouro dos grandes fundos de ações. Contudo, o jogo está estruturalmente mais difícil, por conta da maior competição, das restrições impostas pelo tamanho e pela menor assimetria de informação.
 
A escola buffettiana continua precisa em sua ideia central de que o bom investidor contempla diferenças entre preço e valor intrínseco, calculado com a devida margem de segurança. A grande dificuldade está na implementação, na execução e na adaptação ao respectivo mercado. Talvez, no Brasil, as grandes vantagens competitivas estruturais estão nos nomes típicos de quality, mas nas commodities e na histórica vocação agrícola. Ou talvez estejamos observando o que aconteceu nos EUA há pouco mais de uma década, quando os grandes hedge funds foram perdendo espaço para os ETFs e para os ilíquidos – não à toa, cada vez mais vemos os grandes gestores de ações locais avançarem sobre o private equity e o venture capital. Talvez, por fim, seja o caso de ainda haver grama verde entre as empresas menores listadas, não penetradas pelos grandes institucionais pelo problema do tamanho. Aqui, possivelmente, ainda haja alguma ineficiência.
 
Se as coisas mudam, eu mudo – e você?

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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