A obra “O Auto da Compadecida”, do brilhante Ariano Suassuna, é um marco do teatro brasileiro. Composta por três atos, a peça mistura a cultura nordestina com a tradição religiosa católica, entrelaçadas com o humor crítico típico de seu autor.
Na história, a gaita de João Grilo, abençoada pelo “padim” padre Cícero, é capaz de ressuscitar os mortos. A promessa de “cura de ferimento de rifle” é atrelada ao som do instrumento musical, capaz de trazer de volta à esfera terrena a alma do corpo inerte.
O instrumento é, portanto, poderoso o suficiente para trazer à normalidade o sujeito que não é mais capaz de se ajudar.
Além da ressurreição, o indivíduo ainda recebe a oportunidade de se encontrar com o santo milagreiro que abençoou o instrumento ao passar para o plano espiritual. Este é o real motivo do interesse do cangaceiro Severino no instrumento: fazer uma travessia espiritual segura, encontrar-se com o “padim” padre Cícero e garantir a volta à normalidade.
Para se submeter a tal experiência, é necessário que alguém dê um tiro e que outro toque a gaita. São necessários, portanto, pelo menos dois atos de fé.
O primeiro, claro, no potencial sobrenatural do instrumento. O segundo, na habilidade musical e garantia do remanescente terrestre de tocar a bendita gaita. Arranjar alguém para dar o tiro não costuma ser o problema. Já tocar gaita…
Apesar de escrito em 1955, o auto dialoga com nossa atualidade, inclusive econômica.
Ao passo que a inflação permanece elevada em diversas economias, intensificam-se as discussões sobre como os bancos centrais tocarão as políticas econômicas daqui para a frente.
É possível dividirmos essa problemática em três atos.
No primeiro, durante o pico da pandemia de Covid-19, impôs-se um freio muito forte na demanda de bens e, principalmente, serviços. Entretanto, também houve uma redução da oferta de diversos insumos. Ficou claro que a pandemia era altamente deflacionária, e a dúvida era se as autoridades seriam capazes de gerar liquidez suficiente aos mercados e se garantiriam que o dinheiro chegasse às pessoas em meio a uma economia praticamente paralisada.
No segundo ato, aproximadamente dois anos depois, pode-se dizer que os efeitos do coronavírus são deflacionários para uma série de insumos (matérias-primas) devido à política restritiva do governo chinês em relação ao número de novos casos da doença. Por outro lado, são bastante inflacionários para bens finais, por agravar gargalos de produção em meio a um excesso de liquidez no bolso das famílias.
A dúvida hoje é se, em um contexto geopolítico bastante desafiador devido ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, haverá também habilidade das autoridades em tocar os instrumentos em mão para retornarmos à normalização dos preços sem uma recessão da atividade global.
Nos EUA, o presidente do Fed, Jerome Powell, reconheceu ontem durante evento do FMI que uma alta dos juros de 50 pontos-base na próxima reunião é possível, em linha com o que o mercado vem precificando há algum tempo. O mercado também precifica uma convergência da inflação de volta para um patamar próximo a 2,5% por lá, apesar da taxa de desemprego nas mínimas históricas e dos juros ainda longe do neutro.
Neste caso, também é preciso acreditar que os instrumentos monetários são poderosos o suficiente para trazer-nos de volta a normalidade das últimas décadas.
No terceiro ato, que vem logo em seguida, a real preocupação deveria ser a construção de um portfólio suficientemente robusto para suportar “tiros de rifle” ou inaptidões musicais.
De acordo com o co-CIO da renomada gestora Bridgewater, Greg Jensen, a maioria dos portfólios não está preparada para um cenário inflacionário em que a trajetória dos juros precificada hoje seja insuficiente para a conversão dos índices inflacionários de volta às suas metas.
Isso porque, nesse ambiente, a descorrelação histórica entre as classes de ações e de bonds é praticamente perdida — ou seja, ações e títulos de renda fixa caem juntos, potencializando as perdas do investidor. Além disso, os ativos que devem performar bem nesse cenário inflacionário atual, como as commodities, são pouco encontrados nas carteiras dos investidores.
O portfólio de um investidor de longo prazo, contudo, não pode ser um mero ato de fé. É necessário um constante estudo sobre a fragilidade e a suscetibilidade de nossas convicções.
Por isso, nós da equipe Os Melhores Fundos de Investimento montamos uma carteira com posições estruturais e táticas em ativos alternativos, como commodities, private equity, hedge funds e criptoativos, além dos melhores fundos de ações e renda fixa do Brasil e do mundo: o FoF Melhores Fundos Blend, da Vitreo. Nela investimos grande parte dos nossos recursos pessoais.
A verdade é que não existem instrumentos milagrosos no processo de investimento, mas é possível ter um portfólio afinado com seu perfil de investimento e seus propósitos de longo prazo.
A única garantia é que haverá tiro, resta saber quem realmente toca gaita.
Um abraço,
Laís