Day One

Risco de cauda: o caminho da servidão

Ao minimizar a questão fiscal, Lula ignora a realidade

Por Felipe Miranda

19 dez 2022, 18:00

Governo Lula / Mercado em 5 minutos
Imagem: Reuters

“Afirma-se que o homem é um ser racional, porém, a racionalidade é uma questão de opção – e as alternativas que a sua natureza oferece são estas: um ser racional ou um animal suicida. O homem tem que ser homem – por escolha, ele tem que ter sua vida como um valor; por escolha, tem que aprender a preservá-la; por escolha, tem que descobrir os valores que ela requer e praticar suas virtudes.”

O objetivismo de Ayn Rand, com toda sua defesa da racionalidade, parte de uma premissa aparentemente óbvia: a existência existe. Não há como se escapar das restrições e contingências objetivas. A realidade é real e, mais uma vez apelando a Rand, “você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade.”

Lembrei-me da essência da filosofia de Rand ao me deparar com as palavras do presidente Lula em evento dos catadores: “a gente não cuida do pobre se ficar vendo estatística, se ficar olhando para a política fiscal do governo, sempre haverá uma prioridade acima dos pobres.”

A seguir por esse caminho, Lula ignora a realidade. Talvez o leitor mais crítico pudesse apontar que o presidente eleito fala para a plateia de ouvintes. Pode até ser, nunca saberemos o que está em sua cabeça. Mas, com notícias em tempo real e grupos de Zap altamente engajados, a plateia é sempre o mundo inteiro. 

É justamente o contrário. Só se cuida do pobre pensando em estatística. Aqueles que criticaram o uso da cloroquina no combate à covid por falta de evidência empírica e apoio na comunidade científica agora querem fazer política econômica também desafiando a ciência.

Por mais bem intencionadas que possam ser as palavras de Lula, ”cuidar do pobre” sem espaço no orçamento aumenta o risco fiscal, o que se traduz em mais taxas de juro, e eleva as expectativas de inflação, porque o governo sempre poderá, num ato inflacionário, emitir mais moeda para cumprir seus compromissos financeiros. Mais juros implicam menos investimentos, menos crescimento e mais desemprego. Mais inflação aleija justamente as classes mais pobres, desprovidas de alternativas para blindar seu patrimônio. Os rentistas estão lá protegidos no paraíso dos juros altos e nos altos juros reais da NTN-B. Uma opção pela maior concentração de renda, em tese o oposto do desejo original da esquerda. Lei das consequências indesejadas.

Em entrevista que virou meme, Gabriel Galípolo descarta qualquer risco de a inflação subir no pós-pandemia, para ser desmentido pela imposição material da carestia poucos meses depois. Não deveria incomodar tanto o erro da previsão. “Predição é muito difícil, especialmente se for sobre o futuro.” 

Tentar antecipar o impermeável futuro é comprar um jazigo no cemitério das reputações. Pra mim, o problema maior da entrevista é sua tentativa de refutar o típico paralelo entre economia doméstica e macroeconomia. Era algo mais ou menos assim: “você não pode comparar uma família a um país, porque uma família nunca conseguirá dinheiro se estiver muito quebrada. Um país sempre poderá emitir moeda.” Sim, é verdade. O “pequeno” problema é a consequência da emissão de moeda. A senhoriagem, uma prerrogativa do Estado, resulta em inflação, uma espécie de imposto regressivo, cobrado com mais força das classes mais baixas.

A opção até aqui eleva os prêmios de risco, turva o horizonte para investimentos empresariais, estimula saída de capitais do país, faz o dólar subir, embute uma expectativa de alta dos juros em 2023. Com a Selic em 15% e o dólar a R$ 6, não haverá como cuidar do pobre. O governo se inviabiliza em seus anseios mais centrais. É atirar no próprio pé. Fere de morte o princípio da própria racionalidade. “O homem tem que ser homem – por escolha, ele tem que ter sua vida como um valor”.

Começam a circular relatórios de bancos, corretoras e researches independentes com estratégias de investimento para 2023. Em quase todos eles, há um consenso sobre o quanto a Bolsa brasileira está barata. O Ibovespa negocia próximo a 6,5x lucros, nível mais baixo desde 2005 e dois desvios-padrão distante da média histórica. O Equity Risk Premium (retorno esperado da Bolsa sobre a renda fixa) do índice também se encontra nas máximas históricas.

Sabemos que, no curto prazo, valuation é um driver menor; acaba sobrepujado pelo fluxo de notícias. O barato fica ainda mais barato se a informação marginal for negativa. O tamanho da atratividade dos preços, porém, chama atenção.

Por que estamos tão baratos?

Uma possível explicação está no artigo de Robert Barro, de título “Rare Events and the Equity Premium”, que, em grande medida, se trata de uma atualização mais bem fundamentada (e escrita por um autor mais famoso e respeitado na academia) de Rietz sobre o mesmo tema. A ideia é que os prêmios de risco se alargam quando enxergamos mais probabilidade de eventos raros, os cisnes pretos ou cinzas de Nassim Taleb.

Entre os grandes problemas das últimas semanas está o fato de que o cenário de cauda, ainda que com probabilidade baixa, entrou na conta. Muitos que anteviam apenas mediocridade no governo Lula agora temem o real desastre. 

Se falta dinheiro, o governo emite moeda ou aumenta muito os impostos. A inflação dispara. A população vai para rua. O governo quer atender aos desejos imediatistas. Emite mais moeda para conceder auxílios, pensões, bolsas e afins. A inflação fica mais intensa. Começam os papos de tabelamento, congelamento, confisco, expropriação, ferimento dos direitos de propriedade – esses dois últimos elementos representam a essência do capitalismo e, inclusive, do Parlamento, que nasceu na Inglaterra para proteger direitos econômicos (de propriedade) da burguesia emergente contra os abusos da nobreza.

É o caminho da servidão. Hayek já tinha desenhado a maior das responsabilidades sociais. Uma economia equilibrada. Direito à propriedade privada, respeito aos contratos, obediência às sinalizações do sistema de preços e um Estado que fomente, por meio de bom arcabouço institucional, os três elementos anteriores.

Estamos nos afastando de cada um desses pontos. A racionalidade precisa ser resgatada com urgência. Na direção atual, o governo parece um esquadrão suicida. Se houver alguma acomodação, a recuperação pode ser bem intensa. Por ora, é um grande “se”.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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