Day One

Se você quer paz, prepare-se para a guerra

“Se tivesse de caracterizar o ano de 2024 sob a ótica macro e sistêmica, apontaria dois grandes elementos”

Por Felipe Miranda

15 jan 2024, 15:09 - atualizado em 15 jan 2024, 15:09

O sujeito sai do trabalho tarde da noite. Apressa-se em direção ao carro, parado no estacionamento em posição mais distante do acesso ao escritório. Está cansado e ansioso pelo merecido descanso. Quando se aproxima do veículo, percebe ter perdido sua chave. A iluminação no estacionamento é esparsa. Poucos postes para um pátio grande. Seu celular está sem bateria, impedindo o uso da própria lanterna. Ele tem a mania de sempre checar os bolsos antes de deixar sua estação de trabalho. Sabe, portanto, que as chaves ainda estavam consigo antes de adentrar o estacionamento.

O sujeito tem o pátio inteiro para procurar a chave, mas rodeia obsessivamente perto dos poucos postes onde há iluminação. A real probabilidade do entorno dos postes representar o lugar de “Achados & Perdidos” é mínima, mas é a única ferramenta de que dispõe. Naquele escuro do restante da área, será impossível encontrar a chave. Ao martelo, tudo é prego.

Esse é um viés clássico das finanças comportamentais. Se não dispomos de ferramentas ideais para lidar com a realidade objetiva, adotamos outras imprecisas ou equivocadas de que dispomos. Evidentemente, a realidade não vai se adequar aos nossos modelos mentais ou técnicas quase-científicas. Somos nós que deveríamos nos adaptar à realidade.

Se tivesse de caracterizar o ano de 2024 sob a ótica macro e sistêmica, apontaria dois grandes elementos. O primeiro se refere à perspectiva de corte de taxas de juro em âmbito global, o que deve implicar melhora do ambiente econômico e financeiro de maneira geral. O segundo está ligado aos riscos geopolíticos, naquilo que a consultoria Eurasia vem chamando de “o ano das três guerras”, a saber: Rússia/Ucrânia, Israel/Hamas (com chances de proliferação pela região) e EUA contra si mesmo, numa eleição capaz de dividir o país. Além das três guerras, há uma grande concentração de eleições pelo mundo.

Os economistas, analistas e gestores de investimentos são razoavelmente bons (embora se achem melhores do que realmente são) para calcular e dar preço ao primeiro ponto, mas são péssimos em relação ao segundo. Como Niall Ferguson gosta de dizer, economista acha que história e geopolítica não lhe pertencem, o que é obviamente um erro grotesco, porque essas coisas definem boa parte das relações econômico-financeiras – de forma bastante simples, pense como as coisas mudaram entre o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Michel Temer.

Sabemos como uma queda das taxas de juro pode influenciar o múltiplo de determinada empresa ou diminuir-lhe suas despesas financeiras. Mas é um bocado mais difícil entender a cabeça de Vladimir Putin, Bashar Al-Assad ou Ebrahim Raisi. 

Conforme Luis Stuhlberger lembrou na ótima entrevista ao Valor, “O que a gente não controla são eleições, porque são ‘game changer’ [algo que muda o jogo], e a geopolítica. Agora há, particularmente, um cenário muito complexo de geopolítica, com várias frentes de risco no horizonte. (…) O desafio do desconhecido, todo evento geopolítico está ligado a uma tentativa, e nisso eu concordo com o Ray Dalio [fundador da Bridgewater], que fala muito sobre o suposto declínio do império americano. Então tem três frentes de risco. O primeiro é o que chama de Estados Unidos versus ‘itself’, que é o debate fratricida entre republicanos e democratas que vai ter nessa eleição. O segundo é o desafio militar dos Estados Unidos de ter guerras longe, como o xerife do mundo, tal como no Oriente Médio, na Ucrânia, o Irã, a Coreia do Norte e a China. Se juntar tudo isso, existe um desafio. Os Estados Unidos, que são a reserva de moeda do mundo, com um fiscal horroroso.”

Há uma consequência primeira desse jogo que, ao menos em termos relativos, pode ser positivo para o Brasil, no que a WHG, por exemplo, tem insistido: “mais do que um play de nearshoring, o Brasil volta a ser estratégico”. Somos um país neutro e um dos poucos capazes de conversar com os dois lados da Segunda Guerra Fria. Temos todo tipo de commodity. Estamos entre os maiores produtores de grãos, minério de ferro e petróleo do mundo. Há um play global de mercados emergentes ex-China – e se um tantinho do fluxo estrangeiro que ia para a Ásia vier para cá, nos lembraremos de que a porta deste grande teatro chamado B3 é bastante estreita. Temos uma posição de contas externas bastante privilegiada, com superávit da balança comercial flertando com US$ 100 bilhões – essa entrada de renda externa pode ajudar o fiscal e facilitar programas sociais, numa repetição menos intensa do observado no ciclo 2003-2007.

Ao mesmo tempo, a intensidade das questões geopolíticas representa um risco importante. A Ucrânia pode ser formalmente dividida em 2024, o que significaria um desrespeito formal às fronteiras definidas no ambiente pós-45. Existe probabilidade significativa de que a guerra no Oriente Médio se espraie para além da questão estrita entre Israel e Hamas. E, se Trump voltar, sabe lá qual seria seu nível de revanchismo. 

Se, portanto, podemos e em certo sentido devemos estar expostos ao kit Brasil, que deveria se beneficiar do contexto global e da queda da taxa de juros como poucos, o que pode ser hedge para essa história?

O ouro é o seguro clássico para recrudescimento das tensões políticas. Não está propriamente barato sob uma perspectiva histórica, mas serve bem para situações de guerras intensas e profundas, sobretudo se formos questionar a posição americana como xerife do mundo.

E uma alternativa é o próprio petróleo. Estamos dançando à beira do vulcão no Oriente Médio. Ainda que o fundamento estrito aponte para excesso de oferta da commodity e pressão baixista, uma restrição mais pronunciada da produção no Oriente Médio poderia pegar o mundo no contrapé. Há uma posição short enorme em petróleo e todos agora parecem pessimistas com a commodity, o que a torna um hedge razoavelmente barato. Uma eventual disparada do óleo dificultaria o processo de desinflação global e, por conseguinte, restringiria o espaço para queda das taxas de juro, afetando as bolsas de maneira destacada. Ou seja, é um hedge clássico no momento e que poderia salvar o ano no caso de uma catástrofe. Um combo de ações de petroleiras brasileiras parece boa pedida. Ninguém gosta agora e é isso que faz dele algo tão interessante. 

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Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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