Day One

Se algo der errado, para quem você vai ligar?

“De repente, o voo estava cancelado. A companhia aérea decidiu mudar o horário da partida. Deve ter sido por um bom motivo. Entendo. Eu sempre entendo, mas não importa tanto pra mim […]”.

Por Felipe Miranda

18 abr 2022, 10:19 - atualizado em 18 abr 2022, 12:06

De repente, o voo estava cancelado. A companhia aérea decidiu mudar o horário da partida. Deve ter sido por um bom motivo. Entendo. Eu sempre entendo, mas não importa tanto pra mim. O rearranjo caiu numa data inviável. Antes de formalizar o cancelamento, tentei ligar no SAC, batizado de “Resolve Rápido”.

Depois de três horas de ligação, sem sucesso. Estava ali, vivendo uma espécie de “O Processo” de Kafka: o sujeito transfere a chamada para um terceiro, que devolve o caso para o atendente original, vai para URA e subitamente nem sabemos mais do que estamos falando. Chamar essa história de “Resolve Rápido” é tipo indulto de Dia das Mães para Suzane von Richthofen.

Se você não tem a quem cobrar, como resolver? Sobre ninguém recai a real responsabilidade de resolver uma determinada questão. O cliente sai perdendo. Claro que é um processo dialético, que se volta à própria companhia. O consumidor insatisfeito tem “lifetime value” menor. Vai comprar na empresa do lado.

Noutro dia, um multibilionário — vamos chamá-lo de José — convidou o CEO (doravante Vitor) de uma empresa listada para uma conversa. O CEO, que é também parte do grupo controlador, já sabia que não era coisa boa. José, por meio do seu family office, representa um dos principais acionistas da empresa de Vitor, cujas ações estavam em queda há algum tempo. José faz aquele “old style”, conversa boa, sempre agradável, gosta de ser querido e é, portanto, até amável (tradicionalmente) com seus interlocutores — desde que, claro, seja feita vossa vontade. Quando piscou a mensagem de WhatsApp, Vitor já percebeu que o tom era outro. “Precisamos falar. Venha ao meu escritório. Traga seu CFO.”

Depois das formalidades e da troca de delicadezas típica de uma aproximação dessa natureza, a chapa esquentou. “Se você acha mesmo sua ação tão barata, como insiste em me dizer, por que você não está comprando? Eu comprei bilhão de dólar da minha ação quando ela caiu muito. E você? O que está fazendo? Ah, você está sem liquidez? Eu entendo. Normal. Faz parte. Você e sua família têm muitos bens. Pode me dar em colateral e eu empresto para você dezenas de milhões de reais, com a condição de que você vai comprar tudo na sua própria ação.”

Coincidência ou não (a expressão está na moda no Brasil), a partir daí a guerra parou. A ação da empresa de Vitor só fez subir em Bolsa.

Quando você tem a figura do dono, há quem cobrar. E esse dono, meu caro, acaba se confundindo com a própria companhia. Para ele, não há opção além de dar certo. O fracasso empresarial é também o insucesso pessoal. Não há dissociação. A requerida obsessão do empreendedor, por definição, só está presente se existe a figura do dono. Não é muito diferente da defesa pelo “Extreme Ownership”, de Jocko Willink.

Não há XP sem Guilherme Benchimol, Arezzo sem Alexandre Birman, BTG Pactual sem André Esteves, Cosan sem Rubens Ometto. As empresas são prosopopeias de seus acionistas de referência; mas, ao mesmo tempo, as pessoas são metonímias da empresa. Você poderia muito bem ler sem achar estranho algo como: “Guilherme Benchimol cria plataforma para negociar cota de private equity”.

Se é a sua imagem à frente de uma empresa ou de uma atividade, o alinhamento está dado de forma orgânica e imediata. O fracasso empresarial ou laboral é também o fracasso individual. Ninguém quer essa exposição. Pense no caso simples da Empiricus: há rostos, nomes e sobrenomes em cada uma das séries de assinatura. Tem um responsável, uma pessoa a quem cobrar, quem vai levar os louros e as mazelas de seu resultado, público e marcado a mercado. A cobrança natural da realidade, justa ou injusta, a frieza da objetividade, as forças da natureza em sua manifestação bruta.

Se o objetivo de uma companhia é gerar valor para seus stakeholders ao longo do tempo, quem poderá fazê-lo: um executivo com stock options vencendo em dois, três anos ou o dono que vai passar mais 15 anos à frente do negócio pelo menos? Como tomar uma necessária decisão de longo prazo se seu pacote de remuneração vence em 36 meses?

Alguns exemplos educativos:

As ações de Infracommerce caem quase 40% no mês. Sim, é verdade. Existe um mau humor geral com small caps e com empresas ligadas ao setor de tecnologia e crescimento diante da subida das taxas de juro em âmbito global. Mas o novo plano de remuneração do management é o principal responsável pelo tamanho dessa desvalorização. Já havia uma preocupação assim no IPO. E agora veio outra. A companhia é boa, cresce, o Kai é competente. Mas diluir o minoritário neste momento traz conflitos importantes. Se quem mais gosta da empresa tem 3% da companhia e não compra ação na hora de uma queda assim, quem vai se aventurar?

B3 é outro caso emblemático. Ação barata, forte geradora de caixa, ótimo management, paga bons dividendos, é um monopólio natural e tem muito mais barreira à entrada do que o olhar destreinado gostaria de supor. Mas poderia ser muito melhor do que é. O Conselho de notáveis se reúne para autobajulação e discussões diletantes. Quem vai tomar uma decisão dura, trazer gente nova, empurrar na direção certa, impor remédios amargos? A marinha britânica se reúne em jantares com mordomos enquanto os piratas se colocam ao lado. O conselho elogia a diretoria, que elogia o conselho. A supressão do conflito empurra a volatilidade para baixo do tapete. E, assim, vai aumentando o risco de disrupção, como um sapo dentro de uma panela com água quente.

3R parecia ir por caminho parecido, naquele velho conflito entre o private equity que reduz a participação na companhia e deixa para os futuros acionistas a bomba de pagar bem o management antigo. Claro que sempre há boas explicações. A habilidade de inventar justificativas para explicar a própria remuneração é talvez a maior virtude de altos executivos. Felizmente, no caso de 3R, a duras penas, a lição parece ter sido aprendida (a se consolidar, claro).

Entre as lições mais valiosas de governança corporativa, talvez esteja esta: se você comprar uma ação e ela for mal, há quem cobrar naquela empresa? Se não há a figura do dono, as coisas ficam bem mais complicadas.

Trazendo para nosso pequeno microcosmo, na Empiricus, as coisas são bastante simples: se algo der errado, você sabe muito bem a quem cobrar.

PS.: Nesta época do ano, são comuns reportagens da imprensa criticando o preço dos ovos de Páscoa. Na comparação com os chocolates comuns, você levaria menos gramas pelo mesmo real cobrado, indicando sobrepreço dos ovos do coelhinho. Essa perspectiva negligencia o caráter lúdico do ovo de Páscoa. O quanto ele proporciona de utilidade ao consumidor não está apenas relacionado ao sabor e aos gramas do chocolate. Há toda uma narrativa diferente que torna, intrinsecamente, o produto distinto de uma barra de chocolate. Conforme até mesmo Damodaran reconhece, são as narrativas que definem um valor intrínseco. A ação de um banco posicionado para o financial deepening tem um valor. A ação de uma “all weather stock” tem outro valor. A natureza humana atribui valor (não somente preço) a boas histórias.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.

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