Na nossa coluna de agosto, defendemos a tese “sell in May and go away”. Repetimos este mantra vendido no início de setembro, onde depois de dois ensaios frustrados de recuperação do S&P 500, os mercados voltaram a cair nesses últimos dias, perdendo níveis importantes de suporte.
Entre outros fatores, o agravante maior foi a forte alta de juros na parte longa da curva, com a Treasury de dez anos rompendo o patamar de 4,5%, nível que o mercado não vê desde 2007.
A nova pernada de alta nos juros teve um motivo claro: a reunião do Fed onde (apesar da decisão de não subir o fed funds) as projeções do comitê vieram bem mais salgadas do que o mercado esperava – especialmente dado o movimento das taxas longas.
Por que o Fed decidiu “colocar o dedo na ferida”?
A valor de face, as projeções parecem precificar um pouso suave, com queda gradual da inflação em direção à meta com somente uma modesta alta na taxa de desemprego.
Mas o que poderia ter sido uma conclusão benigna para os ativos de risco tem uma consequência nefasta: a necessidade de manter a taxa de juros elevada por muito mais tempo.
Assim, depois da decisão, o mercado adicionou nova alta ao fed funds neste ano, e retirou 0,50% das quedas precificadas em 2024. A decisão levou o Goldman Sachs, por exemplo, a mudar sua previsão de 3 cortes de 0,25% em 2024 para somente um corte.
A falta de preocupação do Fed com a parte longa da curva deve ter como explicação a alta que representa um movimento endógeno, de equilíbrio, refletindo uma economia menos sensível ao aperto monetário, seja pela continuidade da expansão fiscal, seja pela resiliência dos balanços dos consumidores e empresas que se financiaram nas baixíssimas taxas de juros promovidas pelo Fed entre 2020 e 2021.
Concomitante com essa tese, teríamos também a crença de que esses mesmos fatores levam a uma taxa “neutra” mais alta – pelo menos no curto prazo enquanto esses fatores estiverem operantes (sem entrar na difícil discussão de se o nível da taxa neutra subiu de forma estrutural e permanente – os “dot plots” ainda mostram uma taxa fed funds mediana de longo prazo de 2,5%, apesar de já haver projeções entre membros do Fed de uma taxa neutra de 3,5%).
O que me espanta é como a decisão abraçou uma tese bastante específica sobre o estado da economia. Afinal, não estaríamos em uma fase “dados dependente” do ciclo monetário? Aparentemente não.
Que essa tese talvez esteja correta – e há uma variedade de dados apontando na sua direção –, não se discute. A questão é que, ao adotá-la desta forma, o Fed (e todos nós) teremos que viver com suas consequências.
Entre elas, os economistas do ISI estimam, usando o índice de condições financeiras do próprio Fed, que o aperto nas condições financeiras deve apresentar um arrasto de 0,65% no crescimento de 2024. Além dos efeitos diretos sobre a curva de juros, podemos mencionar a alta no dólar globalmente – por exemplo, o índice do Deutsche Bank voltou aos patamares do final de 2022 – e a alta dos empréstimos imobiliários, batendo 7,5% ao ano.
Não que tudo isso tenha, pelo menos por ora, levado a uma reviravolta na expectativa de um pouso suave – previsão ainda majoritária entre os analistas do buy side (entre eles: Goldman, Morgan Stanley e JP Morgan).
Isso apesar dos fatores de risco adicionais ao pouso suave – que foram mencionados en passant por Powell durante sua conferência de imprensa: a retomada do pagamento dos empréstimos estudantis; a alta do petróleo; a greve do setor automobilístico; e a forte probabilidade de um shutdown parcial do governo federal.
Os economistas da Morgan Stanley estão projetando uma oscilação negativa de 0,7% do consumo real no quarto trimestre deste ano, mas aí tudo voltará ao normal no início de 2024.
Enquanto isso, os economistas do Goldman estão pouco preocupados com os efeitos da alta do petróleo sobre os consumidores. Hoje a parte do orçamento gasto com a gasolina é de 2,3%, quando isso representava entre 4-5,5% do orçamento nos anos 1970.
A JP Morgan defende que a economia americana hoje está passando pela experiência do “sapo sendo lentamente fervido”, o que para eles deve talvez levar a uma recessão, mas somente daqui 12-18 meses. Tudo isso apesar da clara desaceleração da economia global, especialmente na Europa.
Todos esses argumentos me parecem defensivos da tese do pouso suave das respectivas casas. Eu até entendo o otimismo – afinal, a economia americana tem surpreendido positivamente, e até agora quem ignorou a história e defendeu a tese do “this time is different” tem levado a melhor.
Isso dito, é inegável que a distribuição de riscos piorou, e que o “otimismo hawkish” do Fed não é uma boa notícia para ativos de risco.
Com as quedas pós-Fed, os mercados acionários estão rompendo níveis técnicos importantes, mas já há parte dos mercados apresentando valuations interessantes.
Notem que hoje nos EUA – e além – há vários “mercados”. Os “magnífico sete” do setor de tecnologia operam com um P/L de 31x, enquanto as outras 493 ações do S&P 500 operam com o patamar bem mais módico de 16x. O MSCI Mundo ex-EUA opera com um múltiplo de 13x.
Mais uma salva de vendas, algo nada improvável neste ambiente onde a alta dos juros longos pode continuar até algo “quebrar”, e os preços podem atingir níveis incondicionalmente interessantes.
Mas não estamos lá ainda. Paciência: a oportunidade certa pode ocorrer no sempre interessante mês de outubro. Mas até lá, assista à carnificina de camarote.