Day One

Um ninja nunca será um samurai

“Será sempre uma habilidade especial do investidor separar o grupo dos samurais ao dos ninjas. Os últimos jamais terão a elegância e a honra dos primeiros”

Por Felipe Miranda

25 set 2023, 13:09 - atualizado em 25 set 2023, 13:09

GetNinjas

“You say you want a revolution

Well, you know

We all want to change the world

You tell me that it’s evolution

Well, you know

We all want to change the world

But when you talk about destruction

Don’t you know that you can count me out (in)

Don’t you know it’s gonna be

All right?

Don’t you know it’s gonna be (all right)

Don’t you know it’s gonna be (all right)

You say you got a real solution

Well, you know

We’d all love to see the plan

You ask me for a contribution

Well, you know

We’re all doing what we can

Revolution — Beatles

Este é um texto sobre metonímias, IPOs e custos irrecuperáveis. Poderia (e talvez devesse) ser também sobre governança corporativa. Mas não será. Noblesse oblige. “I am nothing but tired”, esclarece Bruce Springsteen.

Vamos falar de Getninjas. Não por um interesse particular no ativo. No momento atual, se você não é acionista da companhia, não parece haver muito o que fazer.

Chegamos a recomendá-lo de maneira bem-sucedida para os assinantes do Masterplan, quando as ações rondavam os R$ 3,50 — por conta da baixa liquidez, a sugestão só faria sentido para um grupo menor. Teria sido melhor comprar ali junto com Alphakey e Indie, perto dos R$ 2,00, mas ainda assim foi um bom lucro (ao menos até agora; sempre bom fazer a ressalva). As ações estavam negociando muito abaixo do caixa e faria sentido algum tipo de movimentação societária ou uma distribuição expressiva desse dinheiro. Agora, com a já anunciada intenção de reduzir o capital no valor de R$ 4,40 por ação — o upside parece limitado, não havendo, a partir dos níveis atuais, muito o que fazer. Pode servir a um trade específico, dada a possibilidade dos atuais acionistas aumentarem sua posição para se fortalecerem para a Assembleia, mas nada muito além disso.

Se for aprovada a redução do capital, você leva os R$ 4,40 por ação e fica com uma pequena sobra de caixa mais basicamente uma casca, que pode: i) ser vendida; ii) passar por um fechamento de capital; ou iii) incorrer numa tentativa de mudar a realidade operacional da companhia, algo em que nem seu fundador parece acreditar; isso não significa que as ações devam negociar a zero depois da redução de capital — Robert Merton tem um modelo de apreçamento das ações como opções sem vencimento; é mais ou menos por aí. 

Se não for aprovada a redução de capital, teremos uma companhia com queima de caixa, sérias dificuldades de crescimento, uma relação desgastada com o mercado de capitais (o fundador não apenas não entregou o plano do IPO como emitiu sinais difusos ao mercado, para dizer o mínimo, desde sua listagem em Bolsa). A própria intenção de reduzir o capital é a sinalização de que os insiders (aqui no sentido daqueles que tocam a companhia e se posicionam do lado favorável da assimetria de informação) não veem uma solução operacional crível para a empresa. E se até mesmo o fundador não vê um futuro, dada sua observação privilegiada do processo e o viés tipicamente otimista dos fundadores de suas crias (se você é de fato empreendedor, entenderá que empresas são como filhos, cujo abandono deveria ser evitado a qualquer custo), não vou eu acreditar num turnaround. Suspeito que nem Kierkegaard toparia esse salto de fé.

Portanto, falamos de Getninjas mais pelo que o caso pode representar para outras situações semelhantes, nos oferecendo valiosas lições para os investimentos futuros. Uma metonímia particular servindo a situações um pouco mais gerais.

Um breve contexto a quem não está acompanhando o caso (os demais podem pular este parágrafo): Getninjas está propondo uma redução de capital no valor de R$ 4,40 por ação. Na prática, equivale a uma distribuição de dividendos de quase todo o caixa da companhia (sobram ainda cerca de R$ 60 milhões). Segundo seu fundador, a decisão reflete a menor necessidade da companhia agora e uma profunda mudança de cenário. Quando fez seu IPO no começo de 2021, havia uma ampla gama de possibilidades de aquisição, algo impossível agora porque qualquer movimento societário grande envolveria necessidade de conferir direito de retirada aos acionistas pelo valor patrimonial, muito acima das cotações atuais. Além disso, a Selic era 2% antes, agora é muito mais alta do que isso, de modo que aquisições potencialmente geradoras de valor antes são agora desvantajosas por conta do maior custo de capital.

As ações reagiram em alta ao anúncio, mas encontraram críticas importantes. Em matéria no Brazil Journal, o contra-argumento era basicamente: “’O que a GetNinjas está dizendo é que ela foi puramente oportunista no IPO: pegou o dinheiro de alguns trouxas e agora, apenas dois anos depois, viu que não tinha mais o que fazer com esse dinheiro e resolveu devolver a um preço 78% abaixo do IPO.’ Em outras palavras: ela está beneficiando a nova base de acionistas em detrimento do investidor de longo prazo, que comprou o papel no IPO e continuou na base. ‘A pergunta que fica é: se eles não têm o que fazer com o dinheiro, por que fizeram o IPO? Como uma história muda tão rápido e radicalmente em só dois anos?’, questionou o gestor.”

Num novo texto no mesmo Brazil Journal, a REAG, investidora que vem comprando as ações de Getninjas, se posicionou, ao menos por enquanto, contrária à operação, dizendo que a companhia “precisa pensar mais fora da caixinha”, “tem muita coisa para fazer, como agregar uma vertical de crédito, de operações condominiais, de seguros, como por exemplo oferecer um seguro performance; dá pra criar também um programa de cashback para fidelizar mais os clientes.” Apuração da ExameIN aponta que “a ideia da REAG é formar um ecossistema de negócios em torno da Getninjas, unindo operações em que a gestora já investe.”


No Pipeline, saiu uma nota interessante, sob o título: “Na Getninjas, o investidor que acertou o timing”, comentando como os fundos da REAG triplicaram sua posição na empresa nos últimos 10 dias, às vésperas do anúncio da intenção de restituição de capital.

A cobertura do caso pela imprensa merece muitos elogios. O trabalho feito por Brazil Journal, Pipeline e ExameIN, agora feito pela competentíssima Natália Viri, é mesmo espetacular. Contudo, alguns pontos talvez merecessem um pouco mais de detalhamento ou contrapontos.

Essa questão do timing me parece uma delas. Neste caso, ordem dos tratores altera o viaduto. Minha leitura é que não houve acerto de timing, tampouco esse seja o ordenamento temporal correto para as movimentações. Entendo que, embora a decisão em prol da restituição de capital já tivesse sido tomada pelo fundador e por acionistas relevantes, ela foi acelerada, justamente para impedir uma espécie de tomada de controle hostil por parte de novos investidores. Os acionistas antigos poderiam ficar sem a companhia e sem o caixa.

A ideia de que “Getninjas foi oportunista no IPO e está traindo os participantes da oferta inicial que acreditavam no longo prazo da companhia” precisa ser questionada com um pouco mais de profundidade. 

Primeiro por uma constatação objetiva: boa parte dos compradores da ação no seu IPO já vendeu há muito tempo. Se não fosse o caso, como o fundador tem menos de 25% da empresa, eles poderiam muito bem barrar a distribuição de capital — bastava ter uma participação conjunta maior do que 25% e votar na Assembleia.

Querendo ou não, o plano traçado no IPO já não existe mais. Por uma razão simples: o mundo mudou e ele é inexequível. Voltamos à máxima do velho Keynes: se o mundo muda, eu mudo… e você? Dois erros jamais poderão fazer um acerto. Se o IPO lá atrás foi um erro (eu realmente acredito nisso!), insistir no mesmo plano de 2021 será um novo erro. Aqui entra a noção de custo irrecuperável. Se você tentou algo e não deu certo, o melhor a fazer é stopar. “Fais fast, fail small”, ensina Taleb. O menor prejuízo é sempre o melhor. Você ainda tem R$ 4,40 por ação — salve isso! A ideia de “desistir nunca, retroceder jamais” é ótima para frases motivacionais e para um filme do Van Damme — na vida real, muitas vezes a melhor decisão é mesmo desistir. Insistir em relacionamentos, empregos, planos, iniciativas empresariais destinadas ao fracasso só leva a mais prejuízo — isso só não vale para times de futebol; até os divórcios já são legítimos hoje em dia. Em várias e várias situações, o melhor a fazer é desistir. Simples assim.

Empreender, ainda mais no Brasil, é um ato de risco e, na verdade, costuma mesmo dar errado. Só uma minoria dá certo. Se você percebeu isso antes da falência completa, melhor. “Você pode ignorar a realidade, mas não poderá ignorar as consequências da realidade.” Reconhecer que não há mais opções para a companhia é um ato de humildade e honestidade intelectual. Continuar fingindo que tudo está bem e haverá um novo plano salvador provavelmente resultará em prejuízos maiores. A possibilidade de uma má alocação do capital, dado que nada funcionou até agora, é enorme — levar o caixa a zero seria muito mais deletério para os acionistas.

O IPO de Getninjas, bem como de outras empresas semelhantes naquela safra de 2021, foi um erro (basta ver os resultados agregados). Mas era compreensível sua existência. Os juros eram negativos no mundo, Adam Neumann era celebrado como um visionário, falar em “software as a service, super app, crescimento exponencial, cash burn para financiar o crescimento em 20 anos” era cult; virou cafona. Aquela ideia de super plataformas digitais (exceção feita ao Nubank, que tem feito inclusive o Brasil ser visto como um lugar passível de Home runs globais)  morreu. Naquele ambiente muito específico, naquela bolha em que tudo era “high tech, high growth”, fazia sentido listar Getninjas. Em qualquer outro ambiente de condições normais de temperatura e pressão, o caso era, na melhor das hipóteses, para um VC ou um private equity — comprovado o track record, poderíamos pensar em ir à Bolsa. Aquela insanidade acabou. Vamos insistir nela até quando?

A argumentação de que “Getninjas deveria pensar fora da caixa” parece certamente tentadora. Aliás, os financistas têm uma certa tendência a, com raras exceções, nunca terem tocado uma companhia do mundo real e se acharem mais competentes do que os empreendedores — veja o que fizeram na BRF; felizmente, a lição foi aprendida e a rota ajustada. Penso até haver uma contradição no argumento. Se a ideia seria atender os acionistas de longo prazo participantes do IPO, pensar muito fora da caixa não seria mudar o que fora compactuado antes?

Ao bom investidor, recomenda-se sempre uma dose de conservadorismo.“There are old investors, and there are bold investors, but there are no old bold investors”, lembraria Howard Marks. Resgatando a etimologia da coisa, um conservador é aquela que reconhece méritos nos ritos, nas tradições, no que sobreviveu ao teste do tempo. Portanto, ele quer conservar as coisas (inclusive o próprio dinheiro). Ele até topa pequenas evoluções, reformas e mudanças marginais, mas nunca estará disposto às revoluções. 

Existe ainda um ponto mais sensível, potencial resultado do desejo de “unir as operações em que a gestora já investe.” Então, caminhamos para um possível claro desalinhamento de interesses. A motivação está em fomentar negócios para Getninjas stricto sensu, ou alimentar partes relacionadas?

Ainda que um novo plano possa ser bem sucedido (não tenho dúvidas da competência da REAG, das coisas que ela já construiu e poderia construir), fico pensando quanto tempo levaria para tudo isso? Qual capex necessário? E quanto valeria a empresa resultante? Veja: quanto vale uma empresa de cashback?  Méliuz está ai a 80% do caixa e ninguém quer (deveria querer, mas essa é outra história, que, ao menos por enquanto, só eu, Rosman, HIX e Polo Capital parecemos defender publicamente).

Embora possa não parecer, desistir é um ato de coragem. E é isso que a vida quer da gente.

PS.: antes de encerrarmos, algumas palavras sobre IPOs em geral. Agora está na moda falar mal de IPO. Soa descolado e inteligente. Qual a nossa opinião a respeito? O que a ciência (as mesas de bar não contam) tem a nos oferecer a respeito?

De fato, há uma extensa literatura, iniciada pelo Jay Ritter, estudando “The Long-Run Performance of Initial Public Offerings”. Essa caminhada começa lá nos anos 70 e depois viria a ser atualizada várias vezes pelo próprio Ritter e replicada por diversos autores, para vários períodos e várias geografias, tipicamente levando à mesma conclusão: na média, os IPOS performam mal no longo prazo. Nós mesmos publicamos um Palavra do Estrategista com a mesma metodologia aplicada ao Brasil, chegando ao mesmo resultado.

Ao mesmo tempo, a literatura também aponta o fenômeno de “underpricing” nos IPOs, uma tendência a, na média, haver uma alta extraordinária das ações em sua estreia na Bolsa. Faz parte da festa uma inauguração bem-sucedida. Isso é muito mais claro lá fora, embora eu e Rodolfo tenhamos publicado um artigo interno na FGV (acho que foi em 2009 ou 2010) sobre o mesmo fenômeno no Brasil — merecia ser atualizado.

O que pensamos a respeito?

O IPO realmente exige um pouco mais de cuidado. Você está do lado desfavorável da assimetria de informação, sabe pouco da companhia, enquanto o vendedor sabe muito. Há pouco histórico sobre aquilo e normalmente você tem pouco tempo de estudar — conhecemos um monte de empresas há 14 anos; uma novata tem pouco a oferecer em termos de capacidade de análise, por mais que se esforce; é uma imposição temporal física. Além disso, as janelas de IPOs se abrem e fecham caprichosamente e, claro, se abrem em momentos de maior otimismo ou até mesmo euforia de mercado, quando as ações costumam estar mais caras.

Ou seja, a guarda precisa estar alta e o investidor deve ser o mais seletivo possível. Agora, condenar todos os IPOs fere a lógica estrita. Falar que todos os IPOs não dão certo é ignorar a realidade objetiva. WEG, Raia, Localiza, Vale, Petrobras… todas elas passaram um dia pelo seu IPO. Pergunte a seus participantes se há arrependimento.

Condenar o IPO ex-ante equivaleria condenar a própria bolsa — e ainda que historicamente o prêmio de risco de mercado no Brasil seja, na média, negativo (ou seja, a Bolsa pague menos do que a renda fixa, numa afronta aos livros-texto e à noção geral de que ativos de mais risco deveriam pagar mais), isso não significa a inexistência de boas coisas para se comprar em Bolsa, tampouco que o cenário não possa mudar à frente. Na média, um monte de coisa é ruim — suspeito até que vinho seja ruim na média, mas prove um bom Échezeaux e revisite o argumento. 

Também não podemos confundir uma safra muito ruim, como foi aquela terminada em julho de 2021, com uma classe necessariamente sempre ruim. Quando os ciclos de IPO começam, costuma chegar muita coisa boa também, empresas grandes, balanço mais forte, bons ativos, geradoras de caixa, com histórico comprovado fora da Bolsa. Mais para o final do ciclo, a coisa vai ficando mais complicada, quando até as bancas de jornal e os carrinhos de pipoca são capazes de listar-se, pois há enorme liquidez e complacência com riscos; sobra dinheiro e tudo parece uma oportunidade imperdível.

Será sempre uma habilidade especial do investidor separar o grupo dos samurais ao dos ninjas. Os últimos jamais terão a elegância e a honra dos primeiros.

Sobre o autor

Felipe Miranda

CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.