Poucas coisas são tão transformadoras para um investidor do que a captura de um megatrend global, aquelas tendências de dez ou quinze anos que começam pequenas e nichadas e vão se tornando grandiosas e consensuais.
É quase uma tautologia. Se:
- i) o ato de investir é algo inerentemente de longo prazo, por conta da aleatoriedade e da imprevisibilidade dos mercados em intervalos curtos, requerendo tempo para que os preços convirjam aos valores intrínsecos; e
- ii) uma ação representa um pequeno pedaço do capital de uma empresa, se o segmento em que aquela companhia está inserida se multiplica por muitas vezes e a firma é capaz de abocanhar um naco razoável daquilo, então seria natural admitir que aquela empresa também será multiplicada por n vezes.
E, se o negócio vai bem, no final do dia a ação acaba seguindo, ensina aquele jovem de Omaha com um futuro promissor pela frente. Uma ação é como uma tatuagem na pele de uma empresa — conforme a companhia cresce, a tatuagem acompanha.
Não é propriamente fácil identificar um megatrend de maneira prospectiva com o objetivo de se ganhar dinheiro. Algumas dessas grandes tendências não são exatamente difíceis de serem percebidas, mas, se ficam assim óbvias para todos, emerge uma adversidade subjacente: distinguir o que já está no preço e o que ainda não está. Quanto do crescimento à frente projetado vai de fato se materializar? Quanto é apenas hype?
Vejo ao menos três megatrends para as próximas duas décadas. Em duas delas, o Brasil encontra vantagens comparativas claras.
A população mundial crescerá em cerca de um bilhão de pessoas até 2050. Estima-se o alcance de 10 bilhões de seres humanos até 2100. Nunca houve na história, em termos absolutos, uma adição populacional tão grande (não confundir com taxa de crescimento percentual). Essas pessoas precisam comer. Se levarmos em conta que o enriquecimento, principalmente nos mercados emergentes, leva a um aumento do consumo de proteínas, podemos vislumbrar décadas profícuas pela frente para os produtores de alimentos. Ponto para o Brasil — e embora possamos estar circunstancialmente pessimistas com o preço de grãos, me parece que o mercado subestima o valor estratégico de SLC; não me surpreenderia com um eventual interesse árabe nessa história. Também poderíamos falar da oportunidade, que já vem sendo aproveitada, por 3 Tentos na expansão do Mato Grosso — começa a fazer sentido inclusive um follow on para acelerar o crescimento aqui. E, obviamente, isso gera toda uma oportunidade para players de infraestrutura e escoamento logístico do Centro-Oeste, seja via Rumo ou Hidrovias do Brasil — para essa última, os preços-alvo já estão sendo revisados para algo acima de R$ 6 e, se vier a expansão para o norte, o que também exigiria uma oferta primária, talvez os modelos já apontassem para algo na casa dos R$ 9.
Outro megatrend bastante óbvio é a transição energética — quando você vê o CEO da Vale (sim, da Vale, não da Natura) escrevendo no jornal sobre a oportunidade única para a neoindustrialização brasileira pautada na economia de baixo carbono, é porque a coisa virou consenso (talvez fosse desnecessária a lembrança de que o setor de Metais & Mining é um dos grandes responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa; a produção de aço gera como subproduto o dióxido de carbono). O ministro Haddad está agora empenhado na emissão de greenbonds, e logo estaremos debatendo a criação de um mercado regulado de carbono no Brasil, o que é ótima notícia. Poucas coisas são tão caras para o investidor europeu do que a narrativa da preservação da Amazônia, e isso coloca o Brasil como protagonista internacional. Possivelmente, inclusive, aqui resida uma das grandes dificuldades de o mercado entender o capex de Raízen — todo mundo se diz buffettiano no Brasil, mas, na real, a maior parte é trader de curto prazo esperando o próximo trigger. Muita gente defende a atração de um sócio para Raízen reduzir seu capex, mas a companhia enxerga as coisas anos à frente e não quer dividir o upside associado a etanol de segunda geração, hidrogênio verde, por aí vai. Mas essa é outra história.
Desde a revolução industrial, instaurou-se a ideia de que a natureza estava aí para servir o ser humano. Poderíamos gozar dela para nosso desenvolvimento. E embora tenhamos sem dúvida avançado muito como sociedade a partir dessa ideia, ela parece ter se esgotado. Percebemos que, mantido o ritmo, não haverá mais natureza lá na frente para nos servir. Melhor parar de maltratar a natureza ou, para usar a terminologia de Jorge Caldeira, começar a restaurá-la — essa é a ideia central do seu livro “Brasil: Paraíso Restaurável”, que, pra mim, pareceu uma versão moderna da “Visão do Paraíso” do Sérgio Buarque de Holanda. O Brasil sempre teve essa associação com o Éden e, se vamos começar a valorizar a natureza como um bem valioso a ser preservado e restaurado, não haveria alguém em maior vantagem comparativa do que o Brasil.
Até aí, nenhuma novidade. Suspeito que até minha filha de três anos já tenha ouvido algo parecido. Quero falar do terceiro megatrend e de como o Brasil poderia, se bem inserido, acabar se beneficiando dela mesmo em termos relativos. Falo da inteligência artificial e da revolução que ela pode causar na educação e na produtividade do trabalho — para quem teme eventuais efeitos deletérios da inteligência artificial sobre a educação infantil, recomendo fortemente o Ted Talk com Sal Khan, intitulado “How AI Could Save (Not Destroy) Education”. Está disponível no YouTube.
Essa questão me ocorreu enquanto ouvia o podcast do Joe Rogan entrevistando o historiador Yuaval Harari. Em determinado momento, falam dos limites da inteligência artificial. Harari responde de forma seca e quase ríspida, naquele estilo “ok, vamos para a próxima”. Diz algo mais ou menos assim: “é óbvio que a inteligência artificial não terá consciência, porque a consciência sofre.”
Achei bonita a resposta. O sofrimento é essencialmente algo natural (não artificial). A partir dele podemos evitar caminhos ruins, aprender com os erros e testar novas possibilidades à frente. Você sofre, reflete e ajusta. Mas confesso ter entrado numa dialética interna, daquelas típicas em que fico rodando em círculos numa masturbação mental sem respostas: será que, se formos apenas química e impulso elétrico, não poderíamos replicar nos computadores, a partir dessa mesma química e dos impulsos elétricos, a mesma sensação do sofrimento? Ou será que há algo além disso na nossa consciência, numa ideia metafísica ou não, sei lá, próxima à alma humana? Teria relação desse daimon (para usar a expressão do James Hillman e evitar uma conotação necessariamente religiosa ao termo “alma”) com a consciência humana?
Não é necessariamente uma conversa platônica, esotérica ou filosófica — embora até possa ser. Isso tem implicações práticas, porque se pudermos conferir à inteligência artificial no futuro alguma espécie de consciência, as consequências éticas, morais e práticas podem ser bastante grandes, incluindo aí a possibilidade de que essa consciência “artificial” esteja preocupada com a própria preservação e se insurja contra os humanos.
Ainda não está claro para mim todo o caminho, nem a multiplicidade de coisas potencialmente advindas da inteligência artificial. Mas começa a ficar meio evidente que haverá uma revolução educacional e do mercado de trabalho à frente. Todo o reconhecimento de padrões, o trabalho braçal, a “planilhagem”, as contas, os modelos e afins poderão ser feitos pela AI. Será difícil para o ser humano concorrer com os computadores nessa seara. Ao mesmo tempo, pelo menos numa primeira fase da inteligência artificial, a vantagem humana estará na criatividade, na geração de novas ideias, na retórica, na inventividade, no improviso, na espontaneidade. De maneira resumida, quase como se as habilidades apolíneas fossem transferidas ao computador, enquanto restará ao homem ocupar o campo dionisíaco (sem que esteja alijado da técnica, é evidente; ele deverá estar munido e associado às atividades apolíneas desempenhadas pela AI).
Talvez seja a hora de perdermos um pouco do nosso histórico complexo de vira-latas e passarmos a valorizar o que Eduardo Giannetti chama de “vitalidade iorubá” ou o que Luiz Felipe Scolari dizia ser “a alegria nas pernas.” Quem sabe teremos uma pauta de exportação além dos alimentos, do minério de ferro, do petróleo e da celulose?