Confesso que eu adoro o S&P 500 como mercado. Não somente pela sua óbvia importância, mas pela sua disciplina técnica: a sua tendência de observar e reagir a níveis de suporte e resistência.
Foi assim, por exemplo, no fundo de outubro do ano passado quando o mercado “recusou” o rompimento do nível de 3600 (onde se encontrava a média móvel de 200 semanas) e começou sua marcha até os níveis de hoje, onde se encontra na resistência de 4300, que se remete às máximas de agosto de 2022.
Sim, o mercado chegou a tradar acima de 4400, mas pode também estar “recusando” esse nível como “recusou” o rompimento do 3600. Assim devemos contemplar essas duas hipóteses: pausa no ciclo de alta ou sua reversão?
Há razões fundamentais para a correção/cautela, mas há também várias considerações importantes sobre fluxo e posicionamento.
Nos mercados, o sucesso rápido cria seus próprios freios. Chegando no final do segundo trimestre do ano, no meio deste mês o índice acionário MSCI Global estava com resultado positivo acumulado de 5,4%, com o índice equivalente de renda fixa acusando queda de 1,4%.
Os analistas do JP Morgan apontam que grandes fundos de pensão e fundos soberanos controlando ao redor de US$9,5 trilhões de ativos fixam a proporção de suas alocações entre renda fixa e variável, que agora acusam um desenquadramento de US$150 bilhões. Esses fundos devem vender ao redor de US$55 bilhões de ações nas próximas semanas, comprando o equivalente em renda fixa para diminuir a superexposição em renda variável.
Um ponto importante em termos de alocação entre renda fixa e variável será a tendência dos fundos americanos alocar cada vez mais em renda fixa, já que fundos de pensão fazem “derisking”, à medida que o cotista chega perto de sua aposentadoria. Enquanto fundos de pensão na Europa e Japão, países com uma proporção maior de aposentados, têm alocação em renda fixa entre 55-60% de suas carteiras, os fundos americanos estão mais próximos de 40%. Isso certamente não é algo que vai impactar os mercados no curto prazo, mas deve ser mantido em mente em qualquer exercício de alocação de carteira.
Outro fator que tem contribuído para a alta das bolsas globais tem sido a compra de fundos sistemáticos: estratégias de “trend-following” (CTA’s); risk parity; e “volatility targeting”. O que essas estratégias têm em comum é aumentar a exposição ao risco quando há queda de volatilidade e, com o índice VIX rodando abaixo de 15% depois de ter superado os 30% com a crise bancária americana em março, a exposição comprada desses investidores, segundo as estimativas de várias casas do “sell side”, já está próxima de suas máximas com espaço reduzido para subir ainda mais.
O posicionamento e “sentimento” dos investidores individuais também têm mudado. Várias métricas, como o índice AAII Bull-Bear, estão apontando para um mercado esticado. “Meme stocks”, por exemplo, têm performado bem melhor que a média do mercado, e a razão entre compra de opções de compra versus opções de vendas dessa classe de investidores também tem subido muito nas últimas semanas. A posição vendida na bolsa americana nos mercados futuros, que chegou a ser de US$500 bilhões em outubro do ano passado, está hoje ao redor de zero.
Então temos vários indicadores apontando para um mercado sobrecomprado. Venda na certa? Não tão rápido: indicadores de mercados sobrecomprados têm um track record pior de predição de quedas do que indicações de um mercado sobrevendido tem de altas. É bastante comum um mercado com forte tendência de alta ficar “overbought” por bastante tempo.
Isso dito, voltamos aos fundamentos. Do lado monetário, as notícias não têm sido das melhores. Vários bancos centrais, ou voltaram a subir juros depois de uma breve “pausa” (Canadá), ou subiram mais do que o esperado (Reino Unido), ou, no caso do Fed, esse fez uma pausa no ciclo de alta só para imediatamente anunciar que deve voltar a subir os juros em breve.
Como matéria de capa do Financial Times corretamente disse, estamos entrando na fase “dolorosa” do ajuste monetário global. Todos esses bancos centrais estão enfrentando diferentes versões do mesmo fenômeno: queda da inflação cheia nos seus componentes mais voláteis; índices de núcleo ainda elevados e estáveis, mas sem clara tendência de queda; mercado de trabalho resiliente apesar de (em algumas economias mais do que outras) uma tendência de queda no nível de atividade, com alguns setores sofrendo bem mais do que outros. Todos esses bancos centrais mais ou menos erraram a mão saindo da pandemia, e assim carregam a preocupação com sua credibilidade institucional (e pessoal).
O que vimos neste mês é que esses bancos decidiram tomar uma atitude em comum frente a esse dilema: aumentar mais o aperto monetário.
Essas ações surpreenderam os mercados, mas fora alguns ajustes pontuais ao longo da estrutura a termo, a “mensagem” básica da curva de juros (pelo menos nos EUA) não mudou: devemos ver algumas altas adicionais de juros, seguidas de uma breve pausa antes do início de um ciclo de corte nas taxas.
Esse ponto merece reflexão: se a reação tivesse sido um “bear steepning”, uma alta generalizada das taxas, mas com as taxas longas subindo mais do que as curtas, isso indicaria que o mercado estaria perdendo confiança nos bancos centrais. Mas a continuidade da forte inversão nas curvas de juros indica que, ao contrário, os mercados de renda fixa (ainda) acreditam em uma rápida desinflação, o que levaria a uma queda relativamente rápida das taxas curtas.
Isso é uma boa ou má notícia para a renda variável? Os estrategistas da Morgan Stanley têm continuamente batido o pé que uma prospectiva desinflação/recessão seria uma péssima notícia, dada a forte relação entre o nível de receita das empresas com o PIB nominal, e a ainda elevada expectativa de crescimento dos earnings que o mercado precifica.
Eles colocam outros fatores pessimistas na mesa: depois do fim do drama do debt ceiling, o Tesouro americano deve recompor sua posição de caixa emitindo títulos que devem diminuir o nível de reservas bancárias entre US$500-800 bilhões nos próximos seis meses. Menos liquidez não tem sido um bom sinal para as bolsas.
Eles também argumentam que o “impulso fiscal” está desacelerando, o que já está tendo impacto na posição financeira das faixas de menor renda da população, e seus economistas estimam que o “excesso de poupança” criado pelos programas fiscais durante a pandemia devem se exaustar até o final do ano.
Eu concordo com todos esses pontos, mas não acredito que a soma das evidências apontem para a conclusão da necessidade de fortes quedas nas bolsas. A verdade é que os mesmos analistas da Morgan Stanley acreditam que a queda dos earnings deve ser relativamente rápida e já acabar em 2024, e os economistas da casa não tem como cenário base uma recessão.
E aqui está o ponto que eu acho crucial: enquanto é bastante provável que vamos ver um processo recessivo (isto é, um ajuste mais forte no mercado de trabalho), a relativa robustez da posição patrimonial das famílias e empresas apontam para a probabilidade de um ajuste cíclico sem crise financeira. Assim teríamos uma recessão relativamente fraca e rápida.
Mantendo isso como hipótese, a tendência dos investidores é de “olhar através” da recessão, e manter o sangue frio.
Obviamente tal atitude carrega muitos riscos e pode ser facilmente acusada de imprudência. Não é difícil imaginar cenários onde a inflação acaba se mostrando muito resistente, forçando a mão dos bancos centrais no aperto monetário, o que levaria a uma recessão mais profunda, com óbvios impactos muito negativos para os resultados das empresas.
Enquanto esse é o cenário de risco, e confesso que esse era o meu cenário até o início deste ano, acho indiscutível – no caso dos EUA, pelo menos – que o ajuste da inflação tem acarretado um custo bem menor do que o esperado para a atividade, o que é uma boa e surpreendente notícia (noto que o grande drama do Reino Unido hoje é porque lá está acontecendo exatamente o contrário).
Assim chego às seguintes conclusões. Os ajustes de posições nas próximas semanas devem criar empecilhos aos mercados. Não acredito em fortes quedas, mas a marcha de alta que começou em outubro deve, pelo menos, pausar. Então (mais uma vez) o S&P 500 deve “respeitar” os níveis de resistência que estão hoje na sua frente.
Mas enquanto a curva de juros mantivver sua fé na rápida desinflação (Treasury de 10 anos abaixo de 4,90% é a “zona de conforto”, subindo acima disso seria um sinal de “risk off”), os ajustes negativos devem ser comedidos (fique de olho no nível de 4200 no S&P 500). Entrando no período de férias no hemisfério norte, podemos ver o mercado (feito o Fed) pedindo uma pausa para avaliar melhor se o otimismo atual se justifica.