
Em 2022, por um breve instante, o Reino Unido teve sua terceira primeira-ministra, Mary Elizabeth “Liz” Truss. Em menos de dois meses, ela conseguiu quase implodir o mercado de títulos britânico com seu infame “mini-budget”, um plano fiscal improvisado que colocou em xeque a reputação do país como porto seguro. O episódio acendeu um alerta desconfortável: nem mesmo as economias desenvolvidas estão imunes ao colapso de credibilidade fiscal. O colapso da libra e o pânico nos gilts foram apenas os sintomas visíveis de uma estratégia econômica descuidada, descolada da realidade.
Pois bem — troque o Reino Unido pelos Estados Unidos, e Liz Truss por Donald Trump. A semelhança é perturbadora. A diferença, claro, é de escala e alcance. Enquanto o desastre britânico foi doméstico e relativamente circunscrito, a ofensiva comercial de Trump não respeita fronteiras. O “Dia da Libertação”, como ele mesmo chamou seu pacote tarifário, pode muito bem desencadear um efeito dominó global. O estrago já começou: os mercados asiáticos afundaram — alguns chegaram a acionar circuit breakers — em reação à retaliação imediata da China. Houve quedas de dois dígitos em algumas praças, com os investidores correndo para reprecificar um mundo em que cadeias produtivas podem ser redesenhadas na marra, sem organização.
No Ocidente, o pânico também se espalha com rapidez. A aversão ao risco dominou os pregões europeus, e os futuros americanos apontam para novas baixas. A diferença, neste caso, é que o epicentro do terremoto é justamente o país que deveria representar estabilidade institucional e previsibilidade de regras. A julgar pelos últimos dias, parece que estamos mais perto do “momento Liz Truss em escala global” do que gostaríamos de admitir. E o mercado, evidentemente, não gosta de surpresas mal explicadas.
· 00:57 — Impacto sobre o Brasil
O alívio inicial com o fato de o Brasil ter sido contemplado com “apenas” 10% de tarifa nas novas medidas de Trump evaporou tão rápido quanto apareceu. Isso porque, no fim do dia, o que grita mais alto é o temor de recessão global — e não é para menos. Podemos estar testemunhando a maior ruptura no comércio internacional desde os anos 1930. Ou algo ainda mais ambicioso (e desastroso). Do ponto de vista da balança comercial brasileira, os danos potenciais são relevantes, sobretudo se não forem negociadas isenções para certos produtos ou flexibilizações específicas para o país. Os setores mais vulneráveis são aqueles que têm maior exposição ao mercado americano: petróleo, café, suco de laranja, papel e celulose, aço e ferro, além das aeronaves. Parte dessa produção até enfrenta concorrência interna nos EUA, mas substituir essas cadeias não é algo que se faz da noite para o dia.
Há, contudo, um rearranjo comercial possível. As tarifas sobre países do Sudeste Asiático, somadas às prováveis retaliações, podem gerar um reposicionamento de rotas comerciais, em que o Brasil — se souber jogar — poderia se beneficiar nos dois flancos: ganhando espaço junto aos americanos ao substituir produtos asiáticos, e junto aos asiáticos ao suprir lacunas deixadas pelos EUA. Exatamente como já fizemos no primeiro round da guerra comercial de Trump, no primeiro mandato, quando nossas commodities agrícolas encontraram nova demanda. Ainda assim, sejamos francos: se essa escalada tarifária descambar para uma recessão global séria, não há colchão que nos proteja por completo. O impacto negativo virá, mais cedo ou mais tarde.
Vivemos tempos de realismo distópico: os socialistas chineses e os petistas brasileiros viraram defensores fervorosos do livre comércio, enquanto os republicanos americanos passaram a militar pelo protecionismo mais arcaico. A ironia se escreve sozinha. Brincadeiras à parte, há quem enxergue em Brasília uma oportunidade: a crise comercial poderia, em tese, ajudar Lula a conter a sangria de sua popularidade. Enquanto as pesquisas Atlas e Quaest da semana passada sugeriram que o presidente ainda tem espaço para cair, a mais recente leitura da Datafolha indica que podemos estar nos aproximando de um piso. As medidas de estímulo em curso devem ajudar — e, se o dólar enfraquecer e o petróleo recuar por conta da desaceleração global, a inflação pode ceder mais do que o esperado. Isso resolveria o problema para 2026? Pouco provável. Mas servir como amortecedor de desgaste até lá? Sem dúvida.
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· 01:46 — Sangria
Nos EUA, o Nasdaq cruzou oficialmente a linha do mercado de baixa na sexta-feira (4), acumulando uma queda superior a 20% desde seu pico histórico em dezembro. O Dow Jones, por sua vez, mergulhou em território de correção, ao recuar mais de 10% desde sua máxima recente. Enquanto isso, o S&P 500 despencou cerca de 6%, registrando sua pior performance diária desde os piores dias de 2020. Se houver mais uma queda de 4% nesta segunda-feira — o que, diga-se, não está fora de cogitação segundo os sinais do pre-market — estaremos diante de um movimento raríssimo, com poucos precedentes históricos. O ambiente de mercado voltou a ser dominado por um grau de incerteza que não víamos desde os primeiros estágios da pandemia.
As variáveis desconhecidas superam — e muito — aquilo que se pode prever com alguma razoabilidade. E, como de costume em momentos de pânico, o instinto dominante dos investidores é um só: correr para as saídas. Não houve espaço sequer para digerir os dados do payroll divulgados na sexta-feira (4). Forte ou fraco? Pouco importa. O que imperou foi a liquidação generalizada. A semana até traz uma agenda relevante — com a temporada de resultados sendo inaugurada, a divulgação do índice de preços ao consumidor e a ata da última reunião do Federal Reserve — mas, sejamos honestos, nada disso está no centro das atenções. O que realmente importa agora são os desdobramentos da guerra comercial deflagrada por Trump: retaliações, negociações, recuos, improvisos e, quem sabe, algum lampejo de racionalidade vindo da Casa Branca. Por ora, tudo segue em aberto — e o mercado, em suspensão.
· 02:32 — Um novo momento Liz Truss, só que nos EUA…
Nem mesmo os apoiadores mais fiéis parecem dispostos a comprar, com convicção, a narrativa que a Casa Branca tenta emplacar. E isso é péssimo — porque esvazia o capital político do governo logo no início do mandato e torna o paralelo com Liz Truss não apenas plausível, mas desconfortavelmente próximo. A comparação faz ainda mais sentido quando se observa que o pacote tarifário anunciado na semana passada está longe de qualquer coisa que se assemelhe a uma estratégia coerente de reconfiguração das cadeias globais de produção. O que se viu não foi uma política industrial pensada; foi retaliação pulverizada ideológica com verniz reformista.
Não há roteiro. Não há diretrizes. Não há qualquer esboço de métrica que permita aferir sucesso ou fracasso — apenas um vácuo preenchido por slogans ideológicos e populismo econômico de manual. Substituir uma cadeia de suprimentos frágil por um cenário de desordem não é promover resiliência: é institucionalizar o improviso. A ideia de reconstruir a indústria americana à base de tarifação punitiva, ruptura com aliados históricos e implosão de acordos comerciais ignora um ponto elementar — os próprios Estados Unidos já não dispõem da estrutura produtiva, da mobilidade de capital humano, nem da agilidade regulatória para sustentar uma manufatura em larga escala.
Falar em “trazer empregos de volta” quando não há trabalhadores disponíveis, capacidade ociosa nem incentivo salarial suficiente para bancar esse retorno beira a ficção econômica. Novamente: a discussão sobre reindustrialização estratégica e revisão comercial é legítima — aliás, é necessária. Mas tentar resolvê-la a golpes de decreto unilateral, sem diplomacia, sem planejamento e sem cooperação internacional, é a forma mais ineficiente (e cara) de enfrentar o problema. Aumentar tarifas não cria fábricas. E o capital não salta no escuro só porque alguém gritou “América Primeiro!”. Essa é a verdadeira armadilha populista que os EUA flertam neste momento.
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· 03:29 — Qual seria a saída?
Usei antes o exemplo de Liz Truss, mas cabe uma distinção fundamental: o Reino Unido opera sob um regime parlamentarista, no qual a substituição do chefe de governo, embora traumática, é institucionalmente mais simples e menos custosa. Já no presidencialismo, não existe esse mecanismo de correção rápida — a única via possível seria o impeachment, que está longe do horizonte atual. Sem esse mecanismo, até porque nem tem motivo para isso, temos outro problema: o ego do presidente não deixaria muita margem para autocrítica ou recuo imediato. É um traço comum a quase todos os políticos, mas ganha proporções enormes entre os populistas
E então, qual seria a rota de escape no curto prazo? Em termos práticos, parte do estrago já está feito. Não há como desfazer o impacto inicial da decisão, mas ainda é possível conter os danos. Uma saída plausível — ainda que pouco elegante — seria a Casa Branca anunciar o adiamento da implementação das tarifas, sob a justificativa de que as negociações bilaterais já começaram e que as contrapartes solicitaram mais tempo para apresentar propostas. Pode não ser verdade, mas serviria como álibi institucionalmente palatável para estancar a sangria. Pode acontecer hoje, quem sabe.
Mais à frente, uma revisão mais ampla será inevitável. O plano, como já disse, é baseado em uma métrica torta: o déficit comercial bilateral e sua relação com as importações dos EUA — e não em critérios minimamente razoáveis de reciprocidade tarifária. Nesse ínterim, será necessário entregar uma cabeça: a mais cotada é a de Howard Lutnick, secretário do Comércio, que parece ter sido escalado desde o início para servir de bode expiatório em caso de desastre. A dúvida é se só ele bastaria.
A verdade é que trocar o time econômico tão cedo implicaria num custo político severo, mas talvez menor do que o de manter um plano que se desmancha em público. E, no limite, o Congresso — por mais rachado que esteja — ainda pode exercer sua prerrogativa institucional de bloquear a medida, já que ela foi estabelecida via ordem executiva amparada em estado de emergência. Seria um constrangimento para a Casa Branca, é claro, mas talvez o único freio possível a uma espiral de equívocos. No fim das contas, o estrago reputacional já está dado. E o mais preocupante é que não se nota, por ora, qualquer inclinação real por parte do governo em reconhecer o erro e corrigir o rumo. A teimosia, como sempre, sai mais cara do que o tropeço original.
· 04:18 — Retaliações
Muitos investidores partiram da premissa de que as novas tarifas comerciais de Trump seriam, como no primeiro mandato, apenas um instrumento de barganha — um ruído estratégico com objetivos de negociação. Desta vez, entretanto, as tarifas não só vieram de fato como foram muito mais duras do que qualquer um havia antecipado. Agora, com o estrago feito, retaliações são o próximo capítulo quase inevitável. O roteiro lembra, cada vez mais, a escalada protecionista da década de 1930.
A União Europeia deve anunciar sua própria resposta nesta sexta-feira. Fontes da imprensa falam em algo na casa dos US$ 28 bilhões. O timing não é coincidência: o anúncio viria imediatamente após a China revelar uma tarifa de 34% sobre todas as importações americanas a partir de 10 de abril — igualando, aliás, o percentual das “tarifas recíprocas” que Trump impôs aos produtos chineses. E não parou por aí: Pequim também divulgou uma série de outras contramedidas, mostrando que pretende retaliar em bloco, de maneira coordenada e contínua.
Outras nações começaram a se posicionar — algumas prontas para reagir, outras ensaiando uma abordagem mais pragmática e dispostas a negociar. Trump, fiel ao estilo, reagiu à represália chinesa com uma de suas postagens em letras garrafais nas redes sociais, afirmando que a China estaria “entrando em pânico”. O problema é que, se há alguém nervoso neste momento, são os mercados globais. A retaliação chinesa não é apenas uma resposta isolada, mas um sinal de que outras potências deverão adotar tom semelhante nos próximos dias. O resultado já se desenha nos mercados: elevação das expectativas de recessão nos EUA, percepção crescente de uma freada na atividade global e fuga para ativos de proteção. O cenário caminha, com inquietante familiaridade, para uma guerra econômica em larga escala. E o mais grave: não há qualquer sinal claro de que o conflito vá parar por aqui. Muito pelo contrário.
· 05:04 — Por isso é sempre bom ter caixa
Costumo insistir na importância do caixa como componente estrutural das carteiras de investimento. Manter o equivalente a três a doze meses de despesas mensais em instrumentos de altíssima liquidez e risco praticamente nulo é, antes de qualquer outra coisa, um antídoto contra a ansiedade e um pilar de estabilidade patrimonial. A depender do seu fluxo de caixa, essa reserva pode ser mais curta ou mais extensa, mas sua função permanece a mesma: proteger e dar margem de manobra.