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Primitivismo econômico: Bolsas globais despencam após ‘tarifaço’ de Trump; entenda os impactos do anúncio para o Brasil e o mundo

O impacto econômico pleno levará tempo para se materializar, mas desde já é seguro afirmar que o maior fardo recairá sobre as economias mais vulneráveis

Por Matheus Spiess

03 abr 2025, 09:39 - atualizado em 03 abr 2025, 09:40

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Imagem: Wikimedia Commons

Bom dia, pessoal. Começamos esta quinta-feira digerindo os desdobramentos do autointitulado “Dia da Libertação” — o nome dado por Donald Trump ao anúncio das chamadas tarifas recíprocas. E já adianto: foi uma bagunça. O resultado imediato veio em forma de forte correção nos mercados globais, com quedas lideradas pelos índices americanos.  O temor de recessão voltou a ganhar força, refletido na queda abrupta dos juros longos e no mergulho dos mercados acionários. A reação do mercado foi tão intensa que, ironicamente, aproximou-se da própria estimativa de perda que as tarifas poderiam causar — como se o pânico precificasse, de forma implícita, o custo da política. 

Se estivéssemos lidando apenas com uma tarifa mínima de 10%, por si só já bastante elevada, os danos talvez fossem mais contidos. Mas não foi esse o caso. O pacote divulgado incluiu tarifas acima da mínima e, pior ainda, fundamentadas não na tal reciprocidade, mas sim no volume de déficit comercial dos EUA com determinados países — um critério que ignora completamente as complexidades do comércio global e beira o primitivismo econômico. Exploraremos ao longo desta newsletter os detalhes técnicos por trás dessa fórmula, mas o saldo preliminar é claro: o efeito é negativo

Para o Brasil, curiosamente, o impacto direto foi menor do que se temia, o que não significa alívio. Os efeitos indiretos, como instabilidade nos mercados emergentes e desaceleração da atividade global, podem se revelar igualmente danosos. O que vem pela frente são meses de retaliações, novas rodadas de negociação e, inevitavelmente, incerteza. O impacto econômico pleno levará tempo para se materializar, mas desde já é seguro afirmar que o maior fardo recairá sobre as economias mais vulneráveis, especialmente no Sudeste Asiático. A atividade global tende a sofrer e, com ela, a inflação poderá ganhar nova vida em vários cantos do planeta. Ainda assim, há nuances importantes: começa a surgir alguma diferenciação entre países e classes de ativos, enquanto os investidores tentam precificar os efeitos colaterais dessa nova ofensiva tarifária, tanto para os Estados Unidos quanto para o restante do mundo.

· 00:56 — O que diabos aconteceu?

Desde que Donald Trump venceu as eleições, alertei que seu governo traria consigo três vetores com potencial positivo — desburocratização, redução de impostos e enxugamento do Estado — e outros três com alto risco de disfunção: atritos comerciais, políticas imigratórias restritivas e um possível distanciamento dos tradicionais aliados dos Estados Unidos. No início, o mercado preferiu enxergar o copo meio cheio, apostando que os pontos positivos seriam priorizados, enquanto os negativos acabariam diluídos por alguma racionalidade institucional. A precificação dos ativos refletiu essa leitura otimista. Mas bastaram os primeiros meses de governo para que essa tese começasse a ruir. E, ontem, tivemos mais uma pá de cal sobre ela.

Em um pronunciamento na Casa Branca, Trump adicionou um novo capítulo à sua já volátil política comercial. Com pompa e teatralidade, anunciou uma tarifa mínima de 10% sobre todas as exportações destinadas aos EUA — um movimento que praticamente sepulta o arcabouço econômico liberal que sustentou o comércio global nas últimas décadas. Além disso, impôs tarifas recíprocas ainda mais altas para países que, segundo ele, mantêm práticas comerciais “injustas” contra produtos americanos. O problema? Essa suposta reciprocidade é uma ficção conveniente: os critérios adotados por Trump se baseiam em déficits comerciais bilaterais e não nas tarifas efetivas aplicadas por esses países (sobretarifa com base nisso não faz sentido).

Empunhando uma tabela com as “injustiças” cometidas contra os EUA, o presidente destacou os principais alvos de suas novas medidas. A lista inclui uma tarifa de 34% sobre produtos da China — que se soma à tarifa de 20% anunciada anteriormente, elevando o total para absurdos 54% —, além de 24% sobre o Japão, 46% sobre o Vietnã e 20% sobre a União Europeia. México e Canadá, que já haviam sido atingidos por tarifas de 25% (com isenções específicas), foram poupados de novos aumentos.

Essas tarifas, previstas para entrar em vigor no início de abril, têm como base o International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), dispositivo que permite ao presidente decretar estado de emergência econômica nacional em função de desequilíbrios comerciais persistentes e práticas consideradas não recíprocas. É um instrumento controverso e, como já vimos com medidas recentes envolvendo o Canadá, o Congresso ainda pode agir para derrubar parte dessas iniciativas.

Quanto aos efeitos econômicos, a estimativa preliminar é de que o PIB dos EUA em 2025 pode sofrer uma contração de até 60 pontos-base, enquanto o núcleo do PCE — o índice preferido do Fed para medir inflação — poderia subir até 120 pontos-base. O cenário, como sempre, será moldado pelas próximas negociações, que tendem a suavizar parte do impacto. Mas o estrago já está feito: o governo optou por escancarar sua faceta mais protecionista logo no início do segundo mandato, embarcando em uma cruzada tarifária com critérios arbitrários e lógica econômica questionável.

· 01:47 — A fórmula e problemas com ela

A fórmula mirabolante utilizada pela equipe econômica de Trump para definir o que seria “injustiça comercial” beira o surrealismo econômico. Liderada por Howard Lutnick no que diz respeito à política externa de comércio, a equipe resolveu simplificar o mundo a partir de um critério engenhosamente equivocado: o déficit comercial bilateral dividido pelas importações totais dos EUA daquele país. A partir daí, aplicaram a seguinte lógica: a tarifa recíproca seria equivalente a 50% dessa razão, ou no mínimo 10% — o que for maior. Em notação matemática, seria algo como max(10%, 0,5 x déficit/importações). Parece confuso? Porque é mesmo. E flagrantemente absurdo.

Segundo essa lógica, países que registram superávit com os EUA — ou seja, exportam mais do que importam para o mercado americano — seriam penalizados com tarifas “proporcionais”. Já países como Brasil ou Austrália, que têm déficit comercial com os EUA (ou seja, importam mais do que exportam), receberiam o mínimo da tarifa — 10% — como se estivessem sendo premiados pela suposta “boa conduta”. Na prática, trata-se de uma guinada protecionista embalada em pseudo-economia.

Exemplos abundam: no caso da China, o déficit comercial é de US$ 295,4 bilhões, com importações americanas da ordem de US$ 438,9 bilhões. Resultado: uma tarifa recíproca de 34% (metade de 67%), que, somada a tarifas anteriores, eleva substancialmente o custo de importação. Para a União Europeia, o mesmo cálculo gera 20% de tarifa, com base num déficit de US$ 235,6 bilhões frente a importações de US$ 605,8 bilhões. Tudo isso parte de uma lógica econômica primitiva, na qual qualquer déficit comercial é tratado como um pecado econômico a ser corrigido coercitivamente — uma visão que ignora completamente os fluxos de capitais, as vantagens comparativas e a complexidade das cadeias produtivas globais.

Como se não bastasse o critério, a apresentação da tabela com os dados tarifários escorregou em gafes diplomáticas. O nome de Taiwan foi listado como país, imediatamente abaixo da China — uma quebra direta da postura histórica dos EUA, com potencial para gerar um incidente com Pequim. E não para por aí: até mesmo territórios desabitados, como a Ilha Heard e as Ilhas McDonald, da Austrália, foram incluídos na lista de tarifados. Houve também inconsistências na forma como blocos econômicos e países-membros foram tratados: primeiro o bloco recebe uma tarifa genérica, depois um país específico do mesmo bloco aparece com outra tarifa.

O resultado foi uma bagunça institucional, com potencial significativo de dano à credibilidade da política comercial da Casa Branca. A reação natural do mercado seria desconfiar não apenas das medidas, mas da competência de quem as formula. É possível que Trump recue nos próximos meses, como já fez no passado, ao perceber os efeitos adversos dessas medidas sobre o bolso do consumidor americano. As negociações que se seguirão devem servir justamente a esse propósito: reconfigurar, suavizar ou abandonar parte das tarifas impostas. E há um bode expiatório pronto para ser usado, caso a pressão aumente: Howard Lutnick, figura já amplamente rejeitada nos corredores de Washington, pode ser convenientemente dispensado para sinalizar uma mudança de direção. O estrago, porém, já foi feito. E a mensagem passada aos parceiros comerciais e ao mercado é clara: a política tarifária dos EUA, hoje, se parece mais com uma caricatura de poder do que com uma estratégia racional de comércio.

· 02:32 — Consequências

O aumento tarifário promovido por Trump não é apenas agressivo — é historicamente desproporcional. Trata-se de um salto muito mais acentuado e veloz do que o imposto pela famigerada legislação Smoot-Hawley de 1930, que elevou as tarifas efetivas sobre importações americanas de 13,5% para 19,6% ao longo de dois anos. Desta vez, um cálculo preliminar sugere que, ao somar os novos anúncios com as tarifas já aplicadas anteriormente sobre automóveis, Canadá, México e China, a taxa média efetiva de tarifas nos EUA pode disparar para 23% — partindo de meros 2,3% em 2024. E isso antes mesmo de qualquer retaliação dos parceiros comerciais ou de uma eventual nova rodada de sanções por parte de Washington. A história, aliás, não é nada gentil com esse tipo de política. No início do século passado, as tarifas do Smoot-Hawley agravaram violentamente o colapso da Grande Depressão, provocando uma queda superior a 60% no comércio global. Hoje, o enredo tem contornos diferentes, mas os efeitos potenciais não são menos preocupantes. As empresas americanas voltadas à exportação estão entre as primeiras vítimas, assim como as companhias que dependem de importações — em especial da China — para manter suas cadeias produtivas minimamente competitivas.

A ilusão de que a produção industrial pode ser rapidamente repatriada para solo americano é, no mínimo, ingênua. Trata-se de um processo complexo, lento e custoso, que exige investimento em infraestrutura, mão de obra qualificada e tempo — três recursos que nem sempre estão disponíveis em abundância. O resultado mais imediato, portanto, será a compressão de margens e o aumento dos preços ao consumidor. A ironia — amarga, diga-se — é que a própria China tende a sair parcialmente beneficiada disso. Como? Bem, nos últimos anos, muitas empresas migraram suas cadeias produtivas para outros países do Sudeste Asiático, como Vietnã e Tailândia, em busca de menores custos e menos atrito com os EUA. Mas a nova postura da Casa Branca atinge em cheio esses destinos alternativos, tornando o retorno à China uma opção paradoxalmente mais racional para algumas companhias.

Em suma, o cenário desenhado por Washington é uma tempestade perfeita de protecionismo improvisado e impacto global mal calculado. A turbulência comercial deve continuar penalizando os mercados no curto prazo, e o risco de uma escalada adicional — com novos capítulos de retaliações e rupturas — não pode ser descartado. A consequência inevitável é o retorno das preocupações com estagflação nos Estados Unidos, ou até mesmo com uma recessão mais adiante. Não à toa, os yields dos Treasuries já começaram a recuar — reflexo direto da aversão ao risco.

· 03:29 — E o Brasil nessa salada?

O Brasil acabou incluído no pacote tarifário com uma alíquota de 10% — um nível que, embora elevado, é relativamente ameno diante das punições impostas a outros países. No comparativo, isso coloca o país em uma posição menos desconfortável, o que pode, em tese, favorecer os ativos locais em relação a seus pares. No entanto, qualquer otimismo precisa vir com um pé no freio: se o impacto sobre EUA e China for suficientemente severo — como parece provável —, e os mercados globais reagirem com a esperada volatilidade, dificilmente o Brasil conseguirá escapar ileso de movimentos mais bruscos. Ainda assim, o momento abre espaço para uma diferenciação relevante entre países, e o Brasil parece relativamente bem posicionado para aproveitar parte desse novo rearranjo comercial. O problema é que algumas teses — especialmente empresas exportadoras e negócios mais integrados às cadeias globais — devem sentir o baque. Nesse caso, a diferença entre um tombo e uma travessia suave está, mais uma vez, na capacidade diplomática do governo.

É aqui que entra o Itamaraty. A inclusão do Brasil na lista, mesmo que com a tarifa mínima, sugere que não estamos exatamente na mira de Washington — e sim no que poderíamos chamar de “zona cinzenta” da política comercial americana. Em outras palavras, há margem maior para negociação. Cabe ao governo brasileiro entender esse sinal e usá-lo com inteligência estratégica, não com a retórica rasteira de retaliação que, vez ou outra, volta a rondar Brasília. A recém-aprovada lei que autoriza reciprocidade tarifária precisa ser encarada como instrumento de barganha, não de revide automático. Temos aqui uma janela. O próprio Wall Street Journal destacou que o Brasil pode ser um dos beneficiados indiretos da reconfiguração de rotas comerciais. Com habilidade, o país pode aprofundar suas relações com mercados estratégicos no Sudeste Asiático e na Europa — aproveitando a vacância deixada por outros fornecedores penalizados pelas novas tarifas americanas. É um momento de cautela, sim. Mas também de oportunidade — desde que não se perca tempo com bravatas.

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· 04:15 — Aversão ao risco

Scott Bessent, atual secretário do Tesouro, já havia sinalizado que estávamos a caminho de um grande realinhamento econômico global — algo na linha de um novo Bretton Woods. O que ele não disse é que esse reordenamento viria com cara de improviso e espírito de década de 1930. No auge do século XXI, era de se esperar uma abordagem minimamente mais sofisticada do que esse festival de tarifas desencontradas que foi entregue ao mundo. Mas não: eis que estamos, sim, entrando em uma nova lógica comercial — só que ela tem mais de instinto do que de estratégia.

A incerteza gerada por essa guinada protecionista já vinha favorecendo os ativos de proteção, e o ouro, naturalmente, foi o principal beneficiado. Antes mesmo do anúncio das tarifas mais agressivas, o metal precioso já havia fechado o melhor trimestre desde meados dos anos 1980. Durante a madrugada, chegou a encostar nos US$ 3.200 por onça-troy, antes de ceder um pouco, mas ainda se mantendo ao redor de US$ 3.100.

Não é apenas a tensão comercial que está alimentando essa corrida pelo ouro. Bancos centrais vêm comprando volumes expressivos do metal como forma de diversificar suas reservas e reduzir a dependência do dólar americano. A preocupação se intensificou depois que o Ocidente congelou os ativos do banco central da Rússia, em um claro recado geopolítico: reservas em dólar são menos seguras do que pareciam. Agora, com os EUA dobrando a aposta em atritos comerciais, essa tendência só deve ganhar tração. Se este é o novo “sistema internacional”, parece que os bancos centrais estão se preparando para um jogo bem menos cooperativo — e bem mais turbulento.

· 05:01 — E se der certo?

E se o plano de Trump de repatriar cadeias produtivas realmente funcionar? A pergunta pode parecer provocativa, mas está longe de ser irrelevante — e, se levada a sério, nos obriga a olhar com mais atenção para um setor muitas vezes negligenciado: o da…

Sobre o autor

Matheus Spiess

Estudou finanças na University of Regina, no Canadá, tendo concluído lá parte de sua graduação em economia. Pós-graduado em finanças pelo Insper. Trabalhou em duas das maiores casas de análise de investimento do Brasil, além de ter feito parte da equipe de modelagem financeira de uma boutique voltada para fusões e aquisições. Trabalha hoje no time de analistas da Empiricus, sendo responsável, entre outras coisas, por análises macroeconômicas e políticas, além de cobrir estratégias de alocação. É analista com certificação CNPI.