Investidor 3.0
Para o sociólogo Domenico de Masi, criador do conceito de “ócio criativo”, equilíbrio entre trabalho e vida pessoal é fundamental
O pensador italiano participou do evento de aniversário de 12 anos da Empiricus; leia os principais destaques da entrevista conduzida por Thiago Veras, head de RH
A pandemia mudou a forma como nos relacionamos com o trabalho. Presos em casa, precisamos equilibrar vida pessoal, cuidados domésticos e obrigações profissionais em um só espaço. Muitas vezes, deixando as linhas se cruzarem: trabalhando demais, deixando o lazer como última prioridade.
Em participação especial no evento de aniversário da Empiricus, o sociólogo italiano Domenico de Masi conversou com Thiago Veras, head de Recursos Humanos da casa, sobre ócio criativo, home office, tecnologia e futuro do trabalho. Confira o vídeo da transmissão abaixo ou os destaques da entrevista ao decorrer do texto:
THIAGO VERAS: O que é o ócio criativo?
DOMENICO DE MASI: Com ócio criativo, eu não quero dizer preguiça, também não quero dizer não fazer nada. É uma possibilidade de fazer três coisas simultaneamente: trabalhar – enquanto trabalho, me divirto, e enquanto me divirto, aprendo coisas. Quando o trabalho pode ser conciliado com o estudo e com o lazer, então, aí sim temos o ócio criativo.
VERAS: Como é que fica na sua visão o ócio criativo nesse novo contexto de teletrabalho, impulsionado principalmente pela pandemia?
DOMENICO: A pandemia modificou completamente a nossa relação com o ócio. Nós nos encontramos em casa e tivemos que gerir tudo das nossas casas. Nesses 20 meses, experimentamos vários tipos de teletrabalho no sentido mais restrito e, agora, muito mais flexível. Mas, em todo caso, crescemos com as possibilidades de usar o ócio criativo nas nossas casas; nós temos menos controle da parte dos chefes. Tendo menos controle da parte dos chefes, logicamente, nós conseguimos dar ao trabalho mais flexibilidade, mais humanidade e mais criatividade.
VERAS: O senhor acredita que o home office veio para ficar? As empresas realmente vão adotar esse modelo de trabalho de forma permanente daqui pra frente?
DOMENICO: Bem, nós devemos nos perguntar como aconteceu essa difusão improvisada do home office devido à pandemia. O primeiro livro que eu escrevi sobre teletrabalho foi em 1993. Naquele tempo, parecia que em poucos anos grande parte dos trabalhadores trabalhariam em teletrabalho. Passaram-se muitos anos, a tecnologia melhorou muito. Apesar de tudo isso, não aumentou muito o teletrabalho.
Dia primeiro de março de 2020, no começo da pandemia na Itália, somente 570 mil pessoas trabalhavam em home office. Após isso, houve um decreto do governo que impôs a necessidade de trabalho em home office. Improvisadamente, os teletrabalhadores passaram de 570 mil para 7 milhões de pessoas em home office. Eu acredito que no Brasil também tenha acontecido algo desse tipo.
Agora por quê isso não aconteceu antes? Por que não foi introduzido nos anos precedentes gradualmente, racionalmente em vez de introduzir improvisadamente? O motivo é principalmente a mentalidade dos chefes. Durante todos esses anos, os chefes tinham a necessidade da proximidade física, de ter esses funcionários ali, para poder chamar a todo momento.
VERAS: Como o senhor enxerga o ócio criativo para as mulheres, considerando seus diferentes papéis na sociedade?
DOMENICO: Qualquer um que tenha trabalhado fora do escritório economizou tempo, dinheiro e também o stress que é causado pela locomoção de casa para o trabalho.
No que diz respeito às mulheres, o fato de estar em casa e ter em casa também o parceiro e os filhos pôde demonstrar o quão honroso é o trabalho doméstico.
As mulheres puderam fazer com que seus maridos e filhos homens também colaborassem para o trabalho doméstico. Logicamente, as mulheres têm direitos iguais aos homens: direito ao trabalho, que gera riqueza; ao estudo, que gera conhecimento; e ao lazer, que gera alegria.
VERAS: Essa nova realidade do teletrabalho se reflete de forma diferente entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento?
DOMENICO: Eu não acredito que exista a diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Existe uma diferença entre ofício e ofício. No mesmo escritório podem ter dois trabalhadores: um que faz uma atividade que pode ser desenvolvida fora do escritório e outro que faz um trabalho que não pode ser desenvolvido à distância.
O barbeiro, por exemplo, não pode trabalhar em home office. Porém a secretária do barbeiro, sim. O problema então não é entre país desenvolvido ou em desenvolvimento e sim entre os tipos de trabalho de um trabalho para o outro.
VERAS: Olhando um pouco mais na perspectiva dos direitos do trabalhador, você acredita que algo deverá ser feito em termos de legislação, reformas por parte do estado nesse novo contexto?
DOMENICO: Bem, eu não conheço a situação legislativa e normativa do Brasil. Na Itália, nós temos duas boas leis, uma feita em 2015, que diz respeito somente aos trabalhadores do estado, e outra feita em 2017, que diz respeito a todos os trabalhadores, públicos e privados. Como o trabalho muda de uma empresa para outra, não depende das leis do estado, mas da da contratação.
Por exemplo, uma grande empresa multinacional, que trabalha em vários países, não deve ter somente regras que dizem respeito aos trabalhadores desta empresa e sim deve levar em consideração as leis de cada país e também os sindicatos de cada categoria.
VERAS: Hoje, a gente tem falado muito sobre ESG nas organizações ‒ melhores práticas ambientais, sociais e de governança. Esses são os princípios que norteiam essa agenda e as organizações que abraçam essa causa devem adotar boas práticas nesses pilares. O senhor acredita que o teletrabalho ajuda na consolidação desses princípios do ESG?
DOMENICO: Acredito que é perfeitamente em concordância com esses princípios. Vamos pensar por exemplo em meio ambiente. Eliminar a locomoção com carros e motos significa, por um lado, reduzir no modo drástico a emissão de gás carbônico, portanto significa também uma redução do trânsito, redução de perda de tempo.
Cada vez que eu vou a São Paulo, eu percebo o absurdo da vida dos paulistas, que são obrigados a passar horas fechados dentro dos carros, devido ao trânsito. E grande parte disso seria eliminado com o home office. Eu lembro que quando José Serra era o prefeito de São Paulo, eu tive a possibilidade de jantar uma noite e disse a ele: ‘porque vocês não promovem o home office? São Paulo me parece a cidade ideal para resolver os próprios problemas com o home office.
VERAS: Em contrapartida aos ganhos com o teletrabalho, a gente percebe que as pessoas estão trabalhando muito mais. Pesquisas mostram esse outro efeito dessa nova realidade, que é o aumento substancial dos casos de burnout, o esgotamento físico e emocional das pessoas como um efeito dessas longas jornadas de trabalho que as pessoas têm feito trabalhando de casa. O senhor acredita que a saúde psicológica das pessoas tende a piorar neste novo contexto do teletrabalho mais expandido?
DOMENICO: Muitos funcionários não foram educados a ter um tempo livre. São pessoas que têm um pensamento unidimensional e somente têm interesse pela vida de trabalho. O paradoxo é que, enquanto isso, o trabalho diminui cada vez mais.
Os nossos antepassados viviam cerca de 300 mil horas e trabalhavam 150 mil horas. Portanto, o trabalho representava metade da vida deles. Hoje nós vivemos 700 mil horas e trabalhamos cerca de 70 mil horas. Então o trabalho é um décimo da vida. Daqui a 20 anos viveremos 800 mil horas e trabalharemos 50 mil horas, então o trabalho será um vigésimo.
Isso significa que uma vida equilibrada é uma vida em que a pessoa que saiba dar uma justa importância não somente ao trabalho mas também à família, à sociedade, à cultura, à política, à introspecção, ao lazer, à amizade, ao amor, à convivência. São todos fatores fundamentais e, sem os quais, a nossa vida seria muito árida.
VERAS: As organizações aceleraram muito o desenvolvimento tecnológico como forma de atender novas demandas sociais que surgiram e outras que se intensificaram muito durante a pandemia ‒ serviço de entrega de comidas, a telemedicina, por exemplo. Nessa perspectiva, o senhor enxerga que tecnologia será uma aliada ou uma ofensora em relação ao desemprego?
DOMENICO: A parte tecnológica teve quatro ondas, na verdade. Nós tivemos a primeira onda mecânica no início de 1800. Cem anos depois tivemos as máquinas eletromecânicas. 70 anos depois, tivemos as máquinas digitais. E agora temos então a inteligência artificial. Cada uma dessas ondas tiraram trabalhos dos humanos. As máquinas mecânicas e eletromecânicas substituíram muito o trabalho operário. Os computadores substituíram muitos empregados, os robôs estão substituindo outros trabalhos operários e a inteligência artificial vai substituir também muito trabalho criativo.
O que isso significa? Que nós aprendemos a produzir cada vez melhor e mais serviços com menos trabalho humano. Isso é a civilidade: tirar cada vez mais a fadiga dos seres humanos.
Aqui eu trago um exemplo. Na Alemanha, conforme foram introduzidas novas máquinas, foi reduzido progressivamente o horário de trabalho. Antes os alemães trabalhavam 40 horas por semana, depois 35 horas por semana. Agora, os metalúrgicos trabalham 28 horas por semana. Desta forma, a Alemanha tem 79% de pessoas trabalhando e o desemprego é de 3,8%.
Então,precisamos reduzir progressivamente o horário de trabalho, ajustando o salário conforme vamos introduzindo as máquinas. Senão, será criada cada vez mais uma massa crescente de desemprego , gerando novos conflitos e colocando em perigo tanto a economia quanto a paz social.
VERAS: Agora estamos caminhando para um período não tão crítico da pandemia, como o senhor você vê a evolução da nossa sociedade nos próximos anos?
DOMENICO: A pandemia demonstrou a todos nós que o mundo é globalizado, que somos um grande vilarejo. A contaminação do vírus atingiu todo mundo: da Itália foi pra Europa, da Europa foi pras Américas, depois voltou para a China, ou seja, o mundo realmente é globalizado.
Aprendemos a importância do welfare, da organização, do voluntariado, porque é necessário a ajuda recíproca entre os cidadãos. Aprendemos também a importância da competência dos médicos, dos organizadores da saúde e assim por diante. Aprendemos a importância do processo de decisão, porque quando existem os grandes problemas como o da pandemia é necessário ter um líder para tomar as decisões rápidas e precisas. Aprendemos também a importância do home office, do qual nós falamos.
E eu espero que esse aprendizado que chegou até nós devido à pandemia possa ser um guia no caminho que faremos no futuro.
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Equipe Empiricus